Flexibilização do licenciamento coloca um terço das terras indígenas e 80% das quilombolas em risco, aponta levantamento
O projeto de lei que flexibiliza o licenciamento ambiental, aprovado pelo Congresso, coloca em risco quase um terço das terras indígenas e 80% das áreas quilombolas do país. Os dados estão presentes em uma Nota Técnica do Instituto Socioambiental (ISA) sobre os impactos do texto.
Um dos pontos sensíveis do projeto é a exclusão de comunidades tradicionais e indígenas do processo de licenciamento quando estiverem em territórios não homologados ou titulados. De acordo com o ISA, o projeto de lei “apaga” da legislação, para efeitos de licenciamento, 259 terras indígenas e mais de 1,5 mil territórios quilombolas. Para a entidade, a sanção do texto pode causar um dos “maiores retrocessos ambientais da história recente do Brasil”.
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A proposta aguarda sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e divide alas do governo. De um lado, as ministras Marina Silva (Meio Ambiente) e Sônia Guajajara (Povos Originários) cobram o veto da proposta, que também é alvo de críticas de pesquisadores, cientistas e diferentes entidades. Do outro, integrantes da gestão com viés mais desenvolvimentista defendem que as mudanças podem ajudar a destravar obras.
— A Constituição prevê que o processo de demarcação ou de homologação é administrativo. Quando o trâmite é iniciado a lei já garante o direito e o usufruto exclusivo destas comunidades sobre as suas terras. Não se pode fazer distinção, como propõe o processo, o que é inconstitucional — afirma o analista de políticas públicas do ISA Antonio Oviedo. — Uma terra indígena que ainda não concluiu o processo não é menos que outra já homologada.
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Para dimensionar o possível efeito da nova legislação, a nota técnica considera um conjunto de 75 obras previstas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) 2023 para a Amazônia Legal. Com a legislação atual, 277 áreas protegidas seriam impactadas pelas iniciativas, ficando a cargo do responsável pela obra a responsabilidade por estudos ambientais nos territórios afetados. Já com a flexibilização, a exigência despenca para 102, desprotegendo cerca de 18 milhões de hectares de floresta, o equivalente ao território do Paraná.
— O projeto resume a análise de impacto para algo como um canteiro de obras. As consequências dos empreendimentos continuarão a serem sentidas, mas ocorrerá uma isenção da responsabilidade dos empreendedores pelo impacto potencial. Passa a ser um problema do poder público. Além disso, órgãos ambientais também terão menos poder para incidir nas medidas compensatórias de uma obra — argumenta Oviedo.
Segurança em territórios
O projeto de lei também é alvo de crítica de lideranças indígenas, preocupadas com a segurança e a manutenção dos territórios em que vivem:
— O projeto é um dos mais graves retrocessos da democracia recente em termo de marco legal para proteção ambiental. Não podemos deixar que uma minoria vinculada ao agronegócio e à especulação imobiliária destrua nossas perspectivas de futuro. Precisamos ter consciência de que essa mudança não é benéfica ao país — defende Beto Marubo, líder indígena do Vale do Javari, onde foram mortos o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips.
Ao GLOBO, o deputado Nilto Tatto (PT-SP), presidente da Frente Parlamentar Ambientalista, adiantou três vetos que serão pedidos a Lula: a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC), obtida por autodeclaração, para empreendimentos de médio porte; a retirada da obrigação de consulta a povos indígenas e quilombolas sobre obras em territórios não demarcados; e a emenda que alterou trechos da Lei da Mata Atlântica, que pode permitir mais desmatamento.
Dois desses trechos — a LAC e a retirada dos povos originários do processo — já haviam sido destacados pelo presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, como prioridades no pedido de veto do órgão, em entrevista ao GLOBO.
A pressão pelo veto de Lula ocorre em um momento de tensão entre o governo e os povos originários. O cenário desfavorável foi acirrado após a aprovação, pelo Congresso, da lei do marco temporal. Segundo a norma, os povos indígenas só podem reivindicar terras que ocupavam até a data da promulgação da Constituição de 1988.
Em setembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou a tese inconstitucional. Lula vetou a proposta com base nesse entendimento, mas o veto foi derrubado pelo Congresso.
Entidades que representam indígenas e quilombolas também demonstram crescente insatisfação com a lentidão do governo federal na demarcação de terras, um dos compromissos assumidos pelo petista na campanha. Apesar da existência de diálogo com os movimentos sociais, os ministérios dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial, da ministra Anielle Franco, — criados por Lula para simbolizar o compromisso do governo com essas agendas — se mostram limitados na capacidade de destravar políticas efetivas. A situação é agravada por uma indisposição do Congresso em relação à pauta.