Mujica e Lucia, um amor que nasceu na clandestinidade
Casal se conheceu na década de 1960 e desde o retorno do Uruguai à democracia jamais se separou; ex-presidente, que morreu na terça-feira, dizia que ela era 'o maior acerto de minha vida' "Estou vivo graças a ela", costumava dizer o ex-presidente uruguaio José “Pepe" Mujica, quando queria expressar a dimensão de seu amor por sua companheira de vida, Lucia Topolansky. O casal era inseparável. Desde que uniram suas vidas quando eram integrantes da guerrilha dos Tupamaros, na década de 1960, Pepe e Lucia só ficaram longe um do outro nos períodos em que estiveram presos, durante a ditadura (1973-1985). Após o retorno da democracia e a liberação e anistia de todos os presos políticos, ambos iniciaram sua carreira política no Movimento de Participação Popular (MPP), e nunca mais se separaram.
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Se casaram em 2005, numa cerimônia íntima e discreta, como tudo em suas vidas. Ambos contaram diversas vezes que se conheceram quando Mujica tinha 37 anos e Lucia 27. Não está claro se foi num encontro no qual a viúva do ex-presidente lhe entregou documentos falsificados, como contou Lucia numa entrevista. Ou quando ambos colaboraram na construção de um túnel que seria usado numa fuga de presos políticos, como revelou Mujica no passado. O que o ex-presidente sempre disse foi que conhecer Lucia foi “um clarão no meio da escuridão”.
Na campanha de 2009, Lucia, que naquele ano foi a senadora mais votada da História do país, contou ao GLOBO que "durante todos esses anos [na prisão] não sabíamos nada um do outro. Pepe era refém da ditadura (o candidato integrava um grupo de nove presos que os militares ameaçam matar se os tupamaros realizassem qualquer atentado) e eu era uma presa política”.
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Com a redemocratização ambos deixaram as armas e passaram a plantar flores em sua chácara em Montevidéu. Na casa que já virou símbolo da austeridade em que viviam, Mujica morreu, ao lado de Lucia. O ex-presidente pedira ficar em casa até o final, e sua mulher aceitou. Quem os conhece, garante que o amor que expressavam mutuamente era bonito de ver. O casal não teve filhos, mas viveu cercado de amigos, animais de estimação e flores. Muitas flores.
A história de Pepe e Lucia foi, em palavras da mulher que se uniu à luta armada na década de 60, esteve presa, fugiu da prisão, foi senadora e vice-presidente, “algo que uniu duas utopias: o amor e a luta política”. A viúva de Mujica nasceu numa família de classe alta uruguaia, diferentemente de Mujica, que era de classe média. É pouco provável que ambos tivessem se conhecido, se não fosse por sua militância nos Tupamaros.
— Nas décadas de 60 e 70, os integrantes do movimento tupamaro tinham, em média, 22 anos —contou Lucia, em 2009.
Em sua juventude, a mulher de Mujica chamava a atenção por uma beleza cativante, contam jornalistas uruguaios. Lucia trabalhava numa financeira e estudava arquitetura. Ao descobrir uma operação irregular decidiu denunciar a empresa, e acabou tendo de passar para a clandestinidade. Pouco depois a jovem uruguaia se integrou ao movimento guerrilheiro mais forte do país, assim como fizeram duas de suas irmãs.
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Quando já namorava Mujica, ambos foram detidos, e só voltaram a se encontrar em 1985. Foram anos duros e a candidata acredita que ambos estão vivos porque “no Uruguai a vida vale muito”.
— Me considero, antes de qualquer outra coisa, uma lutadora social. Meu trabalho no Parlamento e a carreira de Pepe são etapas nesta vida de luta — disse Lucia, na campanha de 2009.
O exílio jamais foi uma opção para o casal, porque “sair de nosso país era pior do que estar presos”. Quando foi detida pela segunda vez, Lucia foi condenada a 45 anos de prisão, por “atentar contra a Constituição”. Esse passado, que alguns críticos do casal nunca perdoaram, nunca foi escondido por eles.
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Para Mujica, sua companheira foi “o maior acerto de minha vida”. Nas últimas semanas e dias, Lucia antecipou que o final de seu marido estava chegando. Em entrevista à Rádio Sarandí na noite de domingo disse que a situação de Mujica "tem um final anunciado”, e que seu entorno está "tentando que passe da melhor forma possível”. Lucia lembrou que estava com Mujica há mais de 40 anos, e que estaria ao seu lado até o fim, como lhe prometeu. E assim foi.