Irreverência de Jards Macalé em imagens: cantor era conhecido por propostas inusitadas para fotos
Irreverente, bom de papo e ótimo contador de "causos", Jards Macalé, que morreu nesta segunda-feira (17), aos 82 anos, transformava cada entrevista sua em um manancial de histórias. Mas não apenas os repórteres aproveitavam para os textos sua verve, já que o cantor e compositor, que sofreu uma parada cardíaca enquanto tratava uma broncopneumonia, sempre fazia questão de incrementar as sessões de fotos com brincadeiras e propostas inusitadas.
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Autor de alguns de seus cliques mais emblemáticos, o fotógrafo Leo Aversa lembra suas experiências com o cantor e compositor, como a foto para o disco "Coração bifurcado", para a qual providenciou um balão em forma de coração. A série de fotos, feita na Lagoa Rodrigo de Freitas, foi usada pelo próprio perfil de Macalé para comunicar seu falecimento, assim como para vários amigos e fãs prestarem a última homenagem.
— Consegui um balão grande em forma de coração e marquei com ele naquele deck da Lagoa, mas ele obviamente atrasou. Eu fiquei com aquele balão ali, andando para cima e para baixo — lembra Aversa. — E as pessoas no deck, ou que passavam na Lagoa, me olhavam com pena, parecia que estava num encontro e a menina não tinha aparecido. Ele morreu de rir quando contei.
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O fotógrafo conta ainda ter sido surpreendido desde a prmeira vez que clicou Macalé, quando o viu sacar um bigode falso da carteira.
— Eu fiquei pasmo com aquilo e falei: "Pô, mas você anda com um bigode postiço na carteira"? Ele respondeu: "É, você nunca sabe quando você vai precisar" — diverte-se Aversa. — Todas as vezes em que fotografei o Jards, acontecia algo fora de série, em todos os sentidos. Uma outra vez ele pegou uma máscara do Batman e botou os óculos por cima. Perguntei se não ficava estranho o Batman de óculos. Ele falou: "Eu uso óculos". Respondi: "Sim, mas o Batman não usa". E ele: "Eu sou o Batman".
Jards Macalé e o bigode falso
Leo Aversa
Outra lembrança é da capa do álbum "Síntese do lance" (2021), em parceria com João Donato (1934-2023), na qual os músicos aparecem nus por detrás de folhagens, em clique feito na casa onde o fotógrafo mantém seu estúdio:
— O Donato ficou de cueca, mas o Jards não, ficou pelado mesmo. Ele não tinha nenhum problema com isso. E não era a primeira vez que eu o fotografava nu. Outra vez, ele ficou pelado numa rua do Jardim Botânico. Mas a gente achou que, por bem na sociedade ocidental cristã, era melhor arquivar a foto (risos).
João Donato e Jards Macalé
Leo Aversa
Início como copista de Severino Araújo
Nascido em 3 de março de 1943 no tradicional bairro da Tijuca, na Zona Norte do Rio, Jards Anet da Silva cresceu em uma família em que a música era uma atividade cotidiana. Quando criança, tinha na vizinhança grandes nomes do rádio de sua época, como Vicente Celestino e Gilda de Abreu. E mesmo em casa tinha as valsas e modinhas frequentemente tocadas pela mãe, Lígia, ao piano, e pelo pai, que costumava empunhar seu acordeom durante as festas. E elas não eram poucas.
Jards Macalé e camisa com a bandeira brasileira
Leo Aversa/ 18-7-2003
Não deu outra: o jovem Jards Macalé caiu no mundo da música. Começou os estudos como copista do maestro Severino Araújo, estudou com o maestro Guerra-Peixe e o violonista Turíbio Santos, encantou-se pela bossa nova, flertou, e depois brigou, com os tropicalistas e herdou o chapéu de Moreira da Silva, o Kid Morengueira, seu amigo e parceiro.
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Na década de 60, depois de ter canções gravadas por Elizeth Cardoso ("Meu mundo é seu") e Nara Leão ("Amo tanto"), substituiu o violonista Roberto Nascimento no Grupo Opinião e passou a ser muito requisitado para shows, como o "Arena conta Bahia", e os primeiros de Maria Bethânia no Rio.
A família se mudou para Ipanema quando Jards ainda era adolescente. E foi nas areias da praia mais famosa do país que herdou o apelido de Macalé - tornando-se xará de um atleta botafoguense que era considerado um dos piores jogadores de futebol de sua época.
Jards Macalé com lente de aumento
Leo Aversa/26-1-2011
Macalé foi também um dos frequentadores mais assíduos das Dunas do Barato, em Ipanema, um espaço no qual, em plena ditadura, as moças faziam topless e fumava-se maconha livremente. Além de Macalé, Chacal, Waly Salomão, José Wilker, Jorge Salomão, Glauber Rocha e Caetano Veloso batiam ponto nas dunas, onde eram produzidos livros, músicas e peças.
Em artigo publicado no GLOBO em 2 de dezembro de 2007, Macalé definiu bem o local: “Naquele pedaço, nos deixavam fazer quase de tudo. No asfalto era outra coisa. Ai de quem bobeasse. Foi um tempo muito criativo. Boa parte da arte libertária, psicodélica, daquela época surgiu na areia. A gente ficava ali, bundeando o dia inteiro. A praia era nossa casa”
Por essas e outras, Jards logo se viu no meio do turbilhão de renovação musical pós-bossa nova.
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Em 60 anos de carreira, fez um pouco de tudo, trafegando com desenvoltura pelas mais diversas áreas: música, cinema, televisão, teatro e artes plásticas. No cinema, por exemplo, atuou e fez trilha sonora em filme de Nelson Pereira dos Santos.
-- Através da música, explorei outras vertentes: teatro, cinema, artes plásticas, literatura, trilha sonoras para exposições... Como ator, me vejo como um canastrão (risos). Bem, não exatamente um canastrão. Não sou um ator profissional, mas amador. Amador é aquele que ama. Ou quem ama a dor. A música me leva a tudo isso. E tudo isso sempre alimentou a minha música -- disse ele ao GLOBO.
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Multiartista, compôs para exibições de Helio Oiticica, Xico Chaves e Lygia Clark.
Aplicado estudante de música na Pró Arte, ele logo se misturou à turma dos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa - que, na mesma época, desembarcava no Rio para o sucesso. Descolou-se deles na Tropicália e foi sensação em 1969, no Festival Internacional da Canção, com a performática “Gotham City” (“Cuidado! Há um morcego na porta principal!”).
Parceiro de Waly Salomão e Vinicius de Moraes, produziu "Transa" (1972), obra-prima do período de Caetano Veloso no exílio, em Londres.
Em fevereiro de 2018, Macalé foi internado no Hospital Santa Cruz, em São Paulo, com broncopneumonia. Segundo reportagem do GLOBO, sua mulher, Rejane, disse que ele encarou tudo com muito bom humor, como em suas músicas. E até ligou para ela da ambulância:
— Ele me disse: "Amor, não se preocupe, eu estou numa ambulância, indo para o hospital, mas estou adorando. Escuta a sirene!" — contou ela. — Depois, me disse que estava gostando tanto que pediu para dar mais uma volta com ele no quarteirão. É bem a cara dele.