Editoras se dividem diante de carta assinada por personalidades contra fim do plástico nas embalagens dos livros
A ideia surgiu a partir de uma constatação despretensiosa feita por Ana Maria Machado. Ao passear pela livraria do Flitabira — festival literário em Itabira (MG) que a homenageou no último mês —, a escritora tentou pinçar ao menos um título desencapado com plástico nas prateleiras da loja. Das 17 mil publicações no local, todas, pasmem, estavam embaladas com o material. Para folhear as obras ao léu, era preciso, portanto, perguntar aos funcionários se estava permitido, ziip, romper o invólucro.
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A questão impulsionou uma conversa trivial entre a autora e o idealizador do evento, o jornalista e escritor Afonso Borges. "Meu sonho é abrir um movimento sobre isso. Não é possível que o mercado editorial produza tanto plástico", reclamou Ana Maria, na ocasião. Afonso não parou de pensar no assunto — e se dedicou, nos dias seguintes, a um levantamento apurado sobre o tema.
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Com base em números divulgados pelo próprio mercado das letras, ele chegou à conclusão de que de 360 a 700 toneladas de lixo são produzidas, no país, com o plástico específico para a embalagem de livros, o chamado shrink. Afonso destrincha o cálculo: em 2024, o Brasil imprimiu 366 milhões de exemplares — desse total, 70% dos tomos foram embalados com o filme termoencolhível, que pesa, em média, entre 1,4 e 2,7 gramas. Daí é só fazer as contas.
— Esse é o plástico mais vagabundo que tem, tanto que é conhecido como "plástico de utilização única". Usa-se olhando para o lixo. Ele não serve para a reciclagem, e estamos falando de algo a nível global: no mundo inteiro isso acontece — lamenta Afonso Borges. — Precisamos pensar no que podemos oferecer como solução sustentável a esse material. Além de tudo, uma livraria inteiramente plastificada é uma grande sacanagem. Do ponto de vista simbólico, está aí um baita prejuízo para o incentivo à leitura. O prazer de folhear um livro faz parte da descoberta desse hábito.
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A pesquisa gerou um movimento abrangente, encampado por personalidades brasileiras de diferentes searas. Um manifesto público divulgado em plena COP30, na última terça-feira (11), por meio do site Change.org — e assinado por nomes como Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Ailton Krenak, Itamar Vieira Junior, Margareth Dalcolmo e Conceição Evaristo, entre outros —, pede o fim do uso de plástico na embalagem de livros, como noticiou o colunista do GLOBO Ancelmo Góis.
"O livro, símbolo do pensamento e da consciência crítica, não pode continuar sendo cúmplice desse desperdício. É incoerente que justamente o setor que trabalha com educação, arte e cultura — fundamentos da sustentabilidade humana — contribua com centenas de toneladas de plástico descartável a cada ano", ressalta o texto.
A ação divide a opinião de editores, como apurou o GLOBO. Num grupo de WhatsApp que reúne um número significativo de profissionais gabaritados e inseridos no ramo, parte das reações é de deboche. A justificativa, para a utilização do tal plástico, está numa exigência feita por gigantes do e-commerce, entre as quais Amazon e Mercado Livre, que concentram metade das vendas on-line de livros e 80% das vendas de e-books no Brasil, segundo dados da plataforma Statista.
Funcionário de editora prepara livros para receberem sobrecapas de luxo
Jamie Kelter Davis/The New York Times
O advento da embalagem, portanto, está diretamente atrelado à chegada dessas empresas no país, há mais ou menos uma década. A prática, aliás, é vista com bons olhos por editoras, que, desde então, passaram a ter seus produtos mais protegidos contra a ação do tempo e do mau cuidado despendido, por vezes, pelas livrarias — relatos dão conta de que, à época em que a Saraiva foi obrigada judicialmente a devolver metade do estoque às editoras, devido à sentença de falência, parte dos livros apresentava todos os tipos de danos e avarias.
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"Se arrumarem uma forma de transportar livros num país continental como o Brasil sem danificá-los e sem submetê-los às condições climáticas de chuva e vento (que também acabam com os livros), eu engrosso o caldo", comentou a publisher de uma editora no país, no tal grupo de WhatsApp. "Somos obrigados a mandar livros com shrink para a Amazon. Caso contrário, não recebem. Então, não é tão simples banir o shrink", reiterou outra profissional.
Um representante de outro grupo editorial afirmou: "Preguiça desse abaixo-assinado. O 'shrink', aquele plástico fininho que embala os livros, já salvou milhares de livros em casos de enchentes, como no Sul do país. Esse papinho deles na COP só serviu para demonizar o pobre do livro". Outro editor concordou, pontuando que o alvo da reclamação tem que ser alterado: "O shrink é o banho demorado que a gente não pode tomar para o agronegócio gastar mais".
A livraria Megafauna no Teatro Cultura Artística, no Centro de São Paulo
Maura Mello
A celeuma, a bem da verdade, abriu campo para um discussão mais densa e multifacetada. Instituição que representa editores, livreiros, distribuidores e demais profissionais do setor, a Câmara Brasileira do Livro (CBL) afirma, ao GLOBO, que "considera oportuno e necessário o debate sobre o uso de plástico nas embalagens de livros, especialmente no contexto da COP30".
A organização sem fins lucrativos reforça que está comprometida com a "busca de soluções que unam cultura, economia e meio ambiente, promovendo o diálogo e construindo pontes entre o ideal e o possível". Segundo a CBL, "o setor tem buscado alternativas sustentáveis, analisando impactos na produção, distribuição e transporte". A associação pondera, no entanto, que "qualquer substituição precisa ser construída de forma integrada, envolvendo toda a cadeia produtiva e apoiada por inovação e políticas públicas".
Busca por alternativas
Maior grupo editorial do país, a Companhia das Letras demonstra respaldo ao movimento, apesar de reconhecer que o uso de plásticos ainda decorre de uma demanda do próprio mercado. Até o momento, editoras que não embalam seus livros com shrinks são compulsoriamente excluídas dos catálogos de multinacionais on-line, algo insustentável para as receitas das empresas atualmente.
— Nós apoiamos os autores nesse manifesto. Esse assunto é fundamental e está em linha com os compromissos ambientais da Companhia das Letras. Por aqui já utilizamos, de forma pioneira, embalagens sustentáveis para o envio promocional de livros e nas vendas do nosso site — exemplifica Mariana Zahar, diretora de operações do grupo. — Para os exemplares destinados ao varejo, o uso de plástico ainda é uma exigência de alguns clientes, mas estamos em diálogo com parceiros e fornecedores em busca de uma solução ambientalmente responsável para essa questão.
Livros em estante de biblioteca
Arte Gustavo Amaral/ Agência O Globo
Afonso Borges, o idealizador do manifesto, define como simplório e redutor o argumento de que a utilização do shrink é uma simples consequência gerada por imposições mercadológicas ("A gente produz livro, a gente não produz plástico", ele já ouviu de um editor, como conta). O escritor insiste que este é o momento de pensar, de maneira conjunta, em alternativas viáveis ao plástico:
— O problema não é das editoras nem da Amazon. O problema é da ciência. Já que é preciso envelopar os livros para preservá-los de maneira adequada, por que não o embalamos com um produto sustentável que não prejudique a natureza? — questiona o jornalista e escritor. — Não quero que a indústria pare de envelopar os livros, até porque o mercado exige isso. Mas será que não existe outro material? Não há pesquisas em busca de alternativas? O que sei é que o plástico representa um contrassenso com relação à finalidade do livro, que é agitar o pensamento. Precisamos buscar na ciência a solução desse problema.