O vascaíno secreto
Na noite de quinta-feira, enquanto o Brasil acompanhava a condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro, eu pensava na solidão de Vítor.
Vítor estava no Estádio Nilton Santos, na arquibancada Oeste inferior, sozinho. Estava em silêncio desde que chegou. E em silêncio permaneceria até sair.
Vitor era um vascaíno secreto em meio a um mar de botafoguenses. Como os tíquetes da área cruz-maltina se esgotaram rápido... ele buscara uma alternativa — adquirindo um solitário ingresso para uma área exclusiva do anfitrião. Exercia uma prática antiga: a de torcer clandestino... sem mexer uma sobrancelha na multidão adversária.
No velho Maracanã... havia quem fizesse disso um esporte. Por vezes acompanhando um amigo, por vezes por superstição. Era um tempo de mais mobilidade arquibalda. Era mais fácil trocar de lado no concreto ou invadir o território alheio. Na era da biometria, é necessário mais engenho.
Para Vítor... não ir ao jogo não era opção. As muitas vezes em São Januário, as repetidas frustrações, as 777 idas e vindas... ele precisava acompanhar de perto o Vasco, esse Vasco, o seu Vasco, ainda que isso exigisse fé e disposição e disciplina de monge. Era necessário pegar o 692, desembarcar na José dos Reis e caminhar, silencioso e vascaíno, no oceano de camisas alvinegras. Um ruído, um ganido, uma vibração... e tudo poderia desandar.
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Por um instante pensei que Vítor representava um pouco esse Brasil surdo dos outros, esse Brasil que não conversa e não compartilha realidades. Ali, no meio da torcida adversária, ele não pedia pênalti quando os outros gritavam. Ele não xingava o juiz que tomava decisões contrárias. Ele não pulava quando queria pular... nem quando não queria. Apenas observava.
Como um petista na convenção do PL, como um bolsonarista na convenção do PT... ele era um infiltrado. E de certa forma o Brasil virou essa partida de futebol — em que as arquibancadas só consomem suas próprias narrativas. Sua excelência, o fato, foi rebaixado. O pênalti duvidoso a favor do meu time é sempre claro. O pênalti claro contra é sempre duvidoso.
Anteontem quase metade do país viu a condenação de Jair como um gol do Brasil. Outra quase metade viu como gol da Alemanha. Papéis invertidos de 11 anos atrás. As duas quase-metades vivem no mesmo estádio e cada vez se afastam mais sob o grito de suas barras-bravas.
É nesse Brasil que Vítor torcia, mais isolado do que um Fux na primeira turma, mais solitário do que o Robinson Crusoé sem radinho de pilha de Nelson Rodrigues. Em absoluta contrição, ele murmurava seus votos. No primeiro tempo buscou um assento próximo do meio-campo. O Vasco achou um gol — ele não se mexeu. O Botafogo empatou, ele respirou. No segundo tempo se moveu para a direita. Na hora das penalidades se aproximou da meta decisiva.
Ali, de certo modo, ele era também o Vasco da Gama, cercado de adversários e dúvidas e dívidas, acreditando num goleiro de nome Jardim e em jogadores recém-contratados. Robert Renan fez o quinto penal... e Vítor teve sua muda redenção, reduziu o berro a um soluço, contraiu as mãos, celebrou apenas com os olhos — e partiu. Deixou o estádio sem ruído, marinheiro esperançoso de cabo cruzado, navegando num oceano de lamentação.