Refugiado ambiental devido à devastação do Cerrado, lobo-guará procura abrigo onde não pode viver
A névoa do início de manhã envolve as montanhas de Minas Gerais em frio e silêncio. Mas na Serra do Caraça, onde floresta e campos se encontram, uivos rompem a quietude. São de Petrina, uma jovem loba-guará que não sabe que lhe puseram um nome e menos ainda que irá contribuir para a conservação de sua espécie, ameaçada de extinção. Ao acompanhar a loba com a ajuda de satélite, cientistas almejam compreender os rumos de um animal que carrega o Cerrado no corpo. E, à medida que o bioma encolhe, vaga país afora, um refugiado ambiental que sintetiza desafios do Brasil.
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— O lobo-guará, o mais peculiar de todos os canídeos, percorre os caminhos de um país de natureza em transformação — salienta Rogério Cunha de Paula, coordenador do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Cenap/ICMBio), especialista na espécie.
O lobo foge da destruição do Cerrado, bioma que perdeu 40,5 milhões de hectares entre 1985 e 2024, segundo o MapBiomas. Se não for atropelado, morto por retaliação a eventuais visitas a galinheiros ou contrair sarna, parvovirose e outras doenças de cães domésticos, o lobo vai parar em áreas desmatadas da Amazônia, da Mata Atlântica e da planície do Pantanal. Estas parecem seus campos de Cerrado nativos, mas não são. Desprovidos de biodiversidade, elas são desertos de vida, condenam o lobo à fome e à doença.
A despeito de ser cada vez mais avistado, até em cidades, a população de lobos está em declínio. Eram cerca de 6 mil em 2012. Em 2020, havia 5.600. E foi estimada uma perda de 12% até 2030.
Petrina foi capturada e solta por pesquisadores do projeto Lobos do Caraça, integrado pela Reserva Particular do Patrimônio Natural do Santuário do Caraça, o Instituto Pró-Carnívoros e o Cenap/ICMBio. O projeto tem o apoio do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. O objetivo é estudar a população de lobos, descobrir de onde vem e para onde vai, e avaliar como o turismo de observação de fauna pode colaborar com a preservação. As informações de projetos como esse podem ser usadas para gerar políticas públicas.
Situado nos municípios de Catas Altas e Santa Bárbara, o Caraça é um santuário religioso e natural. Ali os lobos encontram paz cada vez mais impossível de achar em outras partes. Mas, com 11.233 hectares, cerca de três vezes o Parque Nacional da Tijuca, o Caraça é um jardim para um animal que cuja área de vida, isso é, o território de alimentação e reprodução, pode alcançar 10 mil hectares. Por isso, não suporta uma grande população. Estima-se que lá vivam de seis a oito.
Chapeuzinho Vermelho
Mesmo na imensidão do Brasil, apenas uma fração mínima de território oferece condições razoáveis para o lobo-guará. Segundo estudo relacionado no processo de avaliação de risco do ICMBIo, só 4% da área analisada em Cerrado, Mata Atlântica, Pantanal e Pampas apresentam recursos suficientes para a espécie. Essas manchas de habitat adequado estão, sobretudo, em São Paulo, Minas, Goiás e no Distrito Federal. A Amazônia não foi analisada. Mas os lobos já são registrados no sul do bioma, no Arco do Desmatamento, há alguns anos, destaca o biólogo Ricardo Boulhosa, do Pró-Carnívoros.
No Brasil, vermelho é o lobo, não a Chapeuzinho. Guará é o vermelho dos tupis. Lobo só mesmo para os exploradores europeus, que viram no animal caramelo pernalta e orelhudo o bicho nativo mais parecido com os lobos de sua terra natal. Só esqueceram de combinar com o próprio lobo. Ele nunca comeu gente e só fica bravo, se for provocado ou ameaçado. Ou algum incauto o confundir com pet. Respeito é bom e o lobo-guará gosta.
Cunha enfatiza que de vira-lata o lobo-guará nada tem. O Chrysocyon brachyurus é o maior canídeo sul-americano (um metro de comprimento, sem contar a cauda) e pertence a um gênero exclusivo, sem parentes próximos. Uma obra-prima criada para viver em conexão com as savanas da América do Sul. Mas, tímido e tão vegetariano quanto carnívoro, o lobo parece um caramelo gigante de mechas turbinadas e crina preta.
— Queremos descobrir o que de fato acontece com os lobos. Que caminhos percorrem. Para onde vão? E, quando e por que decidem estabelecer território numa área ou estão apenas de passagem. Eles são indicadores ambientais — afirma Cunha.
Petrina, capturada por algumas horas para avaliação da saúde, colocação de um brinco para identificação e de uma coleira de geolocalização, não queria saber de nada disso. Ela fraquejou à gula por pedaços de frango e entrou na armadilha. Capturada, reclamou o que pôde até receber tranquilizantes para os exames.
Adormecida e coberta por uma manta cor-de-rosa para não sentir frio, Petrina responde sem perceber a todas as perguntas que possam lhe fazer. Pois, a biologia dá respostas aos questionamentos de “Chapeuzinho Vermelho” sem dificuldade.
Por que orelhas tão grandes? Para ouvir o Cerrado. O lobo usa suas orelhas como parabólicas, explica Cunha. Elas formam uma concha acústica bem desenvolvida e ajudam na comunicação à distância. O lobo pode encontrar parceiros para amenizar, durante o período reprodutivo, sua solidão. As orelhas também captam infrassons inaudíveis ao ser humano. São emitidos por lagartos, ratos silvestres e outros pequenos animais dos quais o lobo se alimenta.
E por que olhos tão grandes? Para enxergar longe pequenos detalhes, como um ratinho. E por que uma boca tão grande? Chapeuzinho, nesse momento, pode relaxar. O guará nem pensaria em devorá-la. A boca grande lhe confere uma mordida poderosa o suficiente para romper o casco do tatu, quebrar ossos de roedores e aves.
Mas a biologia foi mais curiosa que Chapeuzinho. E perguntou: Por que um focinho tão grande? Para viver num mundo perfumado. Quanto maior o focinho, mais conchas nasais e células olfativas, que potencializam o olfato. O focinho comprido facilita encontrar animais e as frutas que compõem boa parte da alimentação do lobo. Frutas de cheiro forte como goiaba, maracujá e a lobeira estão entre os pratos favoritos do lobo e, graças ao olfato de primeira classe, ele sabe quando estão no ponto para serem comidas. O mundo do lobo é perfumado.
E por que patas são compridas? Patas longas economizam energia. O lobo é andarilho. Percorre até 20 quilômetros por dia. Passos longos o ajudam a ganhar distância. Também o afastam do solo e o auxiliam a encontrar comida.
Os lobos vagam à procura de melhores condições de vida. É uma busca em vão. Ilude os lobos e aqueles que os veem e imaginam que são muitos. Na Amazônia, os lobos vão, principalmente, no sul do Amazonas e no norte do Mato Grosso. Desde 2023 lobos têm sido observados no Xingu. Cunha diz que isso surpreendeu indígenas com grande experiência em rastreamento de fauna, mas que nunca tinham nem ouvido falar de lobos por aquelas bandas.
Mas a entrada na Mata Atlântica, muito mais devastada do que a Amazônia, é mais antiga e disseminada. O Rio de Janeiro tem populações estabelecidas. Apesar de os registros começarem a se tornar mais frequentes nos últimos anos 20 anos, ter lobos no Rio, estado totalmente de Mata Atlântica, segue sendo inusitado, observa Cunha.
O lobo na praia
O biólogo Izar Aximoff, especialista em fauna urbana, afirma que o lobo está presente em 80% dos 92 municípios. E há um registro em Paraty a apenas 800 metros da praia.
— A expansão parece boa, mas não é. Nem para o lobo nem para os biomas e para nós que dependemos dele. Evidencia o tamanho da destruição do Cerrado e da degradação da Mata Atlântica e o quanto ela precisa de restauração urgente. O lobo está quase indo parar na praia. É uma situação bizarra e não vai surpreender se ocorrer — frisa Aximoff.
A veterinária Flávia Fiori, do Pró-Carnívoros, se preocupa com a grande disseminação de doenças de cães entre os lobos, sem defesas contra elas. Fiori coordena os trabalhos em campo e se emociona com a delicadeza dos lobos e sua fragilidade.
A coleira que Petrina recebeu está programada para ficar com ela por dois anos e se soltará automaticamente findo esse período. Durante esse tempo, os cientistas vão acompanhá-la, assim como a outros lobos, pela terra incógnita dos campos e matas em tempo de mudanças climáticas.
Os dados ajudarão na estruturação do Corredor do Lobo. A ideia é conectar as unidades de conservação em Minas. Com o corredor seria possível permitir o trânsito seguro dos lobos. A iniciativa reúne o ICMBio, o Ibama, o Instituto Estadual de Florestas de MG e o MPMG.
O nome de Petrina é uma homenagem a uma das antigas moradoras do Caraça. Mas agora significa esperança de dias melhores para os lobos e o Cerrado.