Por que os chineses estão esnobando Louis Vuitton e Gucci e dando espaço ao luxo 'made in China'?
Quando Bernard Arnault, um dos homens mais ricos do mundo e presidente da LVMH, passou por Xangai em setembro, muitos imaginaram que seu itinerário seria rotineiro: conferir as lojas da Louis Vuitton, Dior e o restante das boutiques de seu império nos shoppings mais prestigiados da China. Mas Arnault fez algo inesperado. Ele foi às compras — de marcas chinesas.
Carros: Brasil é o país mais importante para a BYD fora da China, diz executivo da montadora chinesa
Sobrou até para o 'macarrão da nonna'. Fabricantes de massa italiana enfrentam tarifa de até 100% nos EUA
No shopping de luxo Qiantan Taikoo Li, em Xangai, Arnault visitou a Songmont, uma marca minimalista de artigos de couro. Lá, ele comprou duas bolsas, segundo pessoas familiarizadas com o assunto. Ele também passou por outro shopping de alto padrão, onde entrou na Laopu Gold, uma joalheria local que abriu uma loja a poucos passos de Cartier e Van Cleef & Arpels. Segundo relatos, ele ficou ali por meia hora, murmurando palavras como “exquisito” e “interessante”.
Foi um gesto pequeno, mas de grande simbolismo. Arnault, cujas empresas ajudaram a definir o conceito moderno de luxo, agora visitava boutiques que podem representar o próximo capítulo do setor — pelo menos na China.
A anedota reflete como o mercado de luxo de US$ 49 bilhões da China está mudando rapidamente. Com o desaquecimento da economia, os gastos com marcas estrangeiras de alto padrão estagnaram. Quando os consumidores chineses decidem gastar, cada vez mais escolhem marcas nacionais. A ascensão dessas etiquetas está redesenhando o mapa de um dos maiores mercados de luxo do mundo e forçando as gigantes globais a prestar atenção.
As plataformas de varejo online foram essenciais nesse crescimento. De acordo com dados compilados pela BigOne Lab e analisados pela Bloomberg News, cinco marcas chinesas de prestígio nos segmentos de bolsas, vestuário, fragrâncias, cosméticos e joias superaram sete rivais estrangeiras em crescimento de vendas nos últimos dois anos.
As vendas de comércio eletrônico da Laopu Gold dispararam mais de 1.000% nos três primeiros trimestres deste ano em comparação com dois anos atrás, enquanto as vendas online de bolsas da Songmont cresceram cerca de 90%.
Em contraste, as vendas online de bolsas da Gucci na China caíram mais de 50%, e as da Michael Kors recuaram cerca de 40%. Outras marcas chinesas — a de maquiagem Mao Geping Cosmetics, a perfumaria To Summer e a marca de roupas de luxo ICICLE — tiveram desempenhos semelhantes em suas categorias.
Marcas chinesas vencem no crescimento online
Na Tmall, o maior varejista online do país, a receita de algumas marcas chinesas está igual ou até superior à de marcas estrangeiras: a Laopu vendeu US$ 630 milhões em sua loja na plataforma em 12 meses até outubro, ante US$ 57 milhões da Van Cleef & Arpels, segundo a consultoria Hangzhou Zhiyi Tech.
A receita de Mao Geping foi de US$ 125 milhões — mais que o dobro das vendas da Bobbi Brown. Para a Laopu Gold, as vendas online e em loja cresceram 250% no primeiro semestre deste ano, após dobrar em 2023 e 2024. Já a Mao Geping Cosmetics registrou crescimento de receita de dois dígitos neste ano, assim como em 2024.
Enquanto isso, a Bain & Co. estima que o mercado de luxo da China — dominado por gigantes europeias como LVMH, Kering e Burberry — encolheu até 20% no ano passado, a maior queda desde pelo menos 2011. Embora haja sinais de recuperação, executivos falam em “cautela” e “incerteza”.
A piora na economia chinesa derrubou o apetite por marcas globais de luxo. A demanda que deveria retornar após o fim das rígidas restrições da Covid não apareceu para as empresas estrangeiras. Essa frustração ajudou a derrubar ações das principais casas de luxo: os papéis da LVMH caíram cerca de 30% desde o pico de 2023, enquanto os da Kering despencaram cerca de 60% desde a máxima de 2021, em Paris. Nos EUA, as ações da Estée Lauder estão 76% abaixo do pico de 2021. Após um salto com o fim dos lockdowns em 2021, os gastos do consumidor na China estagnaram.
Representantes da LVMH, Kering, Chanel, Richemont, Estee Lauder, Max Mara e Capri não responderam aos pedidos de comentário.
Com isso, consumidores recorrem às marcas nacionais, que têm preços mais baixos. O casaco Aircoat de cashmere e lã da ICICLE custa entre US$ 1.123 e US$ 2.808. Um casaco da Max Mara, frequentemente comparado pelos consumidores chineses, sai por mais de US$ 4.200.
As bolsas tipo bucket da Songmont — descritas nas redes como uma alternativa às Picotin Lock da Hermès — custam cerca de US$ 421, enquanto o modelo da Hermès varia de US$ 5.054 a US$ 8.016.
E não é só na China. Consumidores pelo mundo têm se tornado mais criteriosos, buscando marcas que pareçam premium, mas a preços mais baixos, e cansados de grifes que seguem aumentando seus preços.
Mas, segundo Jacques Roizen, diretor-gerente de consultoria da Digital Luxury Group na China, o fator preço não é o principal.
--- Contrariando a percepção comum, as marcas chinesas de beleza não competem pelo preço — elas constroem universos ricos de marca e priorizam a narrativa. Para as marcas ocidentais de prestígio, o avanço dos concorrentes locais deve servir como alerta.
Por que os chineses estão esnobando Louis Vuitton e Gucci e dando espaço ao luxo 'made in China'?
Bloomberg
Essa narrativa se baseia em artesanato e orgulho cultural, e tem ressoado com consumidores chineses mais jovens, que já não enxergam logos ocidentais como símbolos automáticos de sofisticação. Em vez disso, procuram itens que pareçam mais alinhados com suas identidades — e muitas marcas chinesas transformaram esse movimento em seu DNA. Etiquetas como To Summer e Songmont se inspiram profundamente na história, na arte e no cotidiano locais. A mensagem: luxo moderno pode, e deve, ser orgulhosamente chinês.
A filosofia da Songmont enfatiza “estética oriental”, com lojas cujos designs remetem à caligrafia chinesa. A To Summer cria fragrâncias com ingredientes tradicionais como chá, osmanto e casca de laranja preservada, usando porcelanas de Jingdezhen. A ICICLE se inspira no ideal confucionista de harmonia e sobriedade.
É um conceito que a fundadora da Songmont, Fu Song, traçou desde o início.
-- Nos posicionamos como uma marca chinesa enraizada na cultura local. Na conversa global da moda, ainda há poucas vozes chinesas.
Podcast para falar com público-alvo
A estratégia funciona especialmente bem online, com marketing mais afinado com o consumidor local. A Songmont lançou um podcast próprio sobre a vida de mulheres urbanas, que tem repercutido por celebrar autoestima e diversidade de valores de vida, em vez de status social, disse Amber Zhang, sócia da BigOne. A campanha teve impacto mais profundo do que as das marcas globais, afirmou ela.
Para consumidoras como Wan Yihuan, de 30 anos, que trabalha no setor financeiro em Xangai, essa mensagem é clara. Antes viciada declarada em Hermès e Tom Ford, ela agora usa uma bolsa hobo da Songmont de US$ 210 e maquiagem da Mao Geping.
-- Caí na armadilha do consumismo quando era mais jovem. Agora só quero coisas que realmente gosto.
EUA: Trump diz não ver espaço para nova redução de tarifas, mas para o Brasil 'distorção' persiste
Entre as novas marcas chinesas, a Laopu Gold se destaca pelo crescimento de mais de 100% nas lojas físicas desde o início de 2024, enquanto Tiffany e Bulgari tiveram quedas de dois dígitos, segundo dados da BigOne. No exclusivo shopping SKP, em Pequim, as vendas da Laopu subiram mais de 200% no primeiro semestre, segundo uma pessoa familiarizada com os números. Em outubro, abriu uma loja no Plaza 66 — um templo de vidro do luxo longamente dominado por nomes europeus — tornando-se a primeira marca doméstica presente nos dez shoppings mais premium da China.
Pode parecer estranho associar “Made in China” ao luxo, em um país cuja economia cresceu impulsionada pela manufatura de baixo custo. Mas essas marcas premium desafiam essa percepção, com processos de produção mais lentos e sofisticados, comunicados ao consumidor por campanhas de marketing locais.
Em 2013, a ICICLE comprou uma fábrica que produz para a Max Mara em Jiangsu, no leste da China. A Songmont utiliza couro de primeira camada e ferragens banhadas a ouro, produzidas por artesãos com décadas de experiência tradicional da cidade natal da fundadora. A Laopu Gold incorpora formas filigranadas e esmaltação elaborada em suas joias. Mao Geping, considerado o equivalente chinês à Bobbi Brown americana, ensina técnicas de maquiagem em modelos locais para milhões de fãs online.
A popularidade dessas marcas começa a cruzar fronteiras. Em Londres, Naomi Jiang, de 16 anos, agora busca além das grifes tradicionais ao comprar bolsas. Considerando marcas como Hermès caras demais, ela escolheu a Songmont por design e custo-benefício:
-- Estamos tendo acesso a uma seleção mais diversa e de maior qualidade.
Executivos de Songmont, To Summer e Mao Geping afirmam querer expandir globalmente. Eles ainda não divulgaram vendas internacionais, mas analistas acreditam que o volume ainda seja pequeno.
-- As marcas chinesas precisam olhar além da China. “Por que as marcas globais são muitas vezes mais fortes na concorrência com as chinesas? Porque têm respaldo do mercado global. Se você tem apenas o mercado chinês, é como ser uma marca local e isso deixa você em desvantagem -- disse Elvis Liu, fundador e CEO da To Summer.
Ainda assim, há obstáculos. Poucas marcas domésticas superaram a marca de 10 bilhões de yuans (US$ 1,4 bilhão) em receita anual, disse Michelle Cheng, analista do Goldman Sachs.
-- O mercado da China é enorme, então é possível chegar a 1 bilhão de yuans com produtos populares — ou até 3 a 5 bilhões.
Os altos índices de crescimento também vêm de bases pequenas: as 10 marcas mais vendidas do segmento de luxo pessoal na China são todas ocidentais, respondendo por 63% (cerca de US$ 31 bilhões) das vendas no ano passado, segundo a Euromonitor. Nenhuma marca chinesa tem mais de 0,5% de participação de mercado.
O risco maior pode ser psicológico: o mesmo desânimo econômico que derrubou as vendas de marcas europeias pode se espalhar também para as nacionalizadas, disse Cheng. “Para o luxo realmente crescer, você precisa de salários ascendentes e de uma classe média em expansão, fatores hoje desafiados pelos ventos contrários da economia”, afirmou.
É o caso de Guo Wenjun, que já gastou mais de US$ 70 mil em uma única rodada de compras — Rolex, Chanel e até uma jaqueta Armani para criança. Agora, aos 37 anos, com um filho em uma escola internacional cara e preocupações com estabilidade no emprego, ela compra bolsas de US$ 7 e camisetas de US$ 4 no site de descontos 1688.com.
“O luxo costumava me fazer sentir como uma rainha”, disse. “Agora, já não tem a mesma magia.”