Fábricas de mentiras na ciência: produção de artigos científicos falsos cresce, aponta estudo
Há anos, denunciantes alertam para a infiltração crescente de resultados falsos na literatura científica. Uma nova análise estatística reforça essa preocupação.
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Uma equipe de pesquisadores encontrou evidências de organizações obscuras produzindo estudos falsos ou de baixa qualidade em escala industrial. Essa produção cresce rapidamente, ameaçando a integridade de diversas áreas.
“Se essas tendências não forem interrompidas, a ciência será destruída”, afirmou Luís A. Nunes Amaral, cientista de dados da Universidade Northwestern e autor do estudo publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences na segunda-feira (4).
A ciência avançou significativamente nos últimos séculos porque novas gerações puderam ler e construir sobre as descobertas anteriores. Cada novo artigo permite que pesquisadores explorem essas descobertas e façam as suas próprias.
“A ciência depende da confiança no que os outros fizeram, para que não seja necessário repetir tudo”, explicou Amaral.
Na década de 2010, editores e órgãos de fiscalização já alertavam que essa confiança estava ameaçada, com um aumento no número de artigos com dados fabricados e imagens adulteradas. Nos anos seguintes, fatores que impulsionaram esse crescimento se intensificaram.
Com o aumento do número de estudantes de pós-graduação, a competição por vagas em pesquisa tornou-se acirrada. Publicar artigos de alto nível virou requisito para obter empregos, promoções e bolsas.
Para atender à demanda, editoras acadêmicas passaram a lançar milhares de novos periódicos anualmente. “Todos os incentivos são para que as editoras publiquem cada vez mais”, disse Ivan Oransky, diretor executivo do Centro de Integridade Científica.
Organizações conhecidas como fábricas de papel transformaram a fraude científica em negócio lucrativo. Cientistas interessados em melhorar currículos pagam centenas ou milhares de dólares para serem listados como autores de artigos que não produziram, segundo Anna Abalkina, cientista social da Universidade Livre de Berlim, que pesquisa essas fábricas.
Os manuscritos podem ser fornecidos por cientistas desonestos mediante pagamento ou gerados internamente. Para garantir publicação, as fábricas de papel às vezes subornam editores corruptos, conforme investigação do Centro de Integridade Científica.
Abalkina destacou que esses artigos são recheados de fraudes, desde imagens adulteradas até textos plagiados. Para burlar detectores, as fábricas usam inteligência artificial para modificar textos, às vezes inserindo frases bizarras, como “bogus upside” em vez de “falso positivo”.
Apesar dos esforços para ocultar suas ações, Abalkina rastreou milhares de artigos produzidos por essas fábricas na Rússia, Irã e outros países. “Você aprende a reconhecer os padrões”, afirmou.
Amaral e colegas analisaram esses padrões com teoria de redes e técnicas estatísticas. “Tentamos mostrar o que está por trás da superfície”, disse Reese Richardson, pesquisador da Northwestern e coautor do estudo.
Eles criaram um banco com mais de um milhão de artigos, coletados em fóruns online e no Retraction Watch Database, mantido pelo Centro de Integridade Científica.
A equipe listou 30 mil artigos retratados ou suspeitos de terem sido produzidos por fábricas de papel. As conexões entre esses trabalhos indicam fortemente fraude em larga escala, envolvendo grupos de editores e autores que frequentemente colaboram.
“Existem redes enormes e densamente conectadas, todas enviando artigos umas às outras”, afirmou Richardson. “Se isso não é conluio, não sei o que é.”
Outra evidência veio da análise de imagens duplicadas. Alguns artigos copiavam imagens de vários trabalhos, e ao mapear essas conexões, os pesquisadores identificaram redes com milhares de artigos, publicados em curto espaço de tempo e geralmente por uma mesma editora.
Para Amaral, esse padrão sugere que fábricas de papel criam bancos de imagens usados para gerar lotes inteiros de artigos vendidos a editores corruptos. Após um tempo, criam novas imagens e buscam novos alvos.
Os artigos estudados foram revelados graças a investigadores independentes. Para estimar quantos ainda não foram expostos, a equipe criou um modelo estatístico que prevê a taxa de surgimento desses artigos. A estimativa é que o número real pode ser cem vezes maior do que o identificado.
Elisabeth Bik, especialista em fraude científica que não participou do estudo, afirmou que o trabalho confirma suas suspeitas. “É fantástico ver todo o trabalho consolidado numa análise mais ampla”, disse.
Amaral e colegas alertam que a fraude cresce exponencialmente. No estudo, calcularam que a quantidade anual de artigos suspeitos dobra a cada 1,5 ano — ritmo muito superior ao aumento geral da produção científica, que leva 15 anos para dobrar.
“Já é um problema e antevejo uma crise”, afirmou Abalkina.
Eles também notaram que as fábricas de papel focam áreas específicas. Por exemplo, pesquisas sobre microRNA e seu papel no câncer têm mais indícios de fraude do que outras áreas relacionadas ao RNA, como a edição genética via CRISPR.
Amaral acredita que, em breve, outras áreas também serão afetadas.
“O risco é que muitos campos da ciência fiquem contaminados, a ponto de pesquisadores respeitáveis evitarem entrar neles, devido ao excesso de lixo”, disse.
A inteligência artificial deve agravar o problema, prevê Abalkina. Em vez de adulterar imagens existentes, as fábricas podem criar imagens falsas sob demanda. Testes mostraram que essas imagens já são praticamente indetectáveis.
“É realmente assustador”, declarou.
Em maio, o presidente Trump destacou o problema da fraude científica em decreto sobre “ciência padrão-ouro”. Citou retratações de pesquisas financiadas pelo governo por dados falsificados.
Porém, não apresentou novas iniciativas para combater o problema. Cientistas protestaram, temendo que a ordem promova censura política.
Richardson e colegas afirmam que cortes no financiamento científico nos EUA podem piorar a situação, aumentando a pressão sobre pesquisadores em busca de recursos e empregos.
“O que o governo Trump faz em nome da integridade científica vai intensificar essa competição”, disse Richardson.
O Instituto Nacional do Câncer anunciou recentemente que financiará apenas os 4% dos projetos com maior demanda de bolsas, em vez de 7%. Trump propôs cortes ainda maiores, que o Congresso avalia.
Richardson alerta que esses cortes dificultam pesquisas de longo prazo, essenciais para avanços genuínos.
“Quando a pressão é enorme, esses problemas surgem”, afirmou.
Medidas comuns, como recolher documentos, não bastam para conter o problema, disse Amaral. “É como tentar esvaziar uma torneira com um copinho.”
Bik sugeriu que editoras dediquem mais recursos para monitorar manuscritos, da mesma forma que empresas de cartão de crédito monitoram fraudes.
Amaral propôs que cientistas que cometem má conduta sejam temporariamente proibidos de publicar, incluindo os que colocam seus nomes em artigos mal verificados.
“Tornar autores responsáveis pelas pesquisas reduziria o número de publicações”, afirmou. “Precisamos focar na qualidade, não na quantidade.”
Oransky destacou que o problema está nos incentivos. “Precisamos parar de lucrar com fraudes.”