Artigo: barricadas são um sintoma do narcofeudalismo, um domínio de território que vai muito além do tráfico de drogas
X. mora na Cidade Alta, em Cordovil, na Zona Norte da Cidade do Rio de Janeiro. A Cidade Alta nasceu como um conjunto habitacional no fim dos anos 1960, criado para abrigar pessoas removidas de comunidades. Já há décadas, porém, é dominada por traficantes — atualmente, do Terceiro Comando Puro (TCP). Tem cerca de 60 prédios, mas obedece a critérios de uma favela: barricadas e fossos, como numa cidadela medieval, com bandidos armados e moradores assustados atrás das barreiras.
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Y. é morador do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, também na Zona Norte do Rio. Fica a cerca de dez quilômetros em linha reta de Cordovil e sua Cidade Alta. No século XVI, o Morro dos Macacos era parte de uma fazenda e pertencia aos jesuítas; no século XVII, pertencia à Coroa Portuguesa. Atualmente, pertence ao Comando Vermelho (CV). Lá também tem barricada — e isso não é exclusividade das duas favelas citadas: como mostra matéria do GLOBO desta segunda-feira, são 13.604 barreiras do crime espalhadas pelo Estado do Rio, segundo mapeamento do governo estadual. O que indica que pode haver mais, muito mais.
No meio dos dez quilômetros entre a casa de X. e a de Y., ficam os complexos do Alemão e da Penha, alvo no último dia 28 da maior e mais letal operação policial já realizada no Rio de Janeiro — 121 mortos, entre eles quatro policiais, 99 presos, 96 fuzis apreendidos. Os dois conjuntos de favelas são também controlados pelo CV. E lá, claro, também há montes de barricadas. Não importa a facção: o que move os traficantes do Rio é a luta por mais território; avançam em seu projeto expansionista armados de fuzis e de ódio pelos rivais, pela polícia e por qualquer um que fique no seu caminho.
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Gabriel de Paiva / Agência O Globo
Esse desejo por mais favelas tem sua razão de ser. Olhando de sobrevoo, por que diabos vendedores de drogas lutam por território para dominar? Vender drogas e controlar vielas são duas ações que não precisam andar juntas — uma, eventualmente, atrapalha a outra, inclusive. Vendo mais de perto, porém, faz sentido: os traficantes querem terra e gente para dominar. A barricada, já há algum tempo, é menos uma barreira para a polícia e mais uma sinalização de que, daquele ponto em diante, quem manda é o bandido.
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Como mostra um relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de fevereiro deste ano, as facções lucram mais no país com venda ilegal de combustíveis e de tabaco e falsificação de bebidas do que com cocaína ou maconha. E, no caso do Rio, a cobrança de taxas de comerciantes e moradores e a venda de serviços; na Rocinha, por exemplo, entra mais dinheiro no caixa do Comando Vermelho vindo da extorsão do que do comércio que levou esses criminosos a serem conhecidos como traficantes.
Esse rótulo do narcotráfico, assim, ficou desatualizado. O chefe do crime numa favela do Rio, por esses dias, reverbera a postura de um senhor feudal do século XII. Cobra taxas, explora serviços e, com um fuzil na mão e uma ideia ruim na cabeça, submete moradores como se fossem seus vassalos. Os criminosos criam seus próprios códigos de leis e condutas, defendem seus limites com barricadas, portões e armas e decidem quem pode ou não entrar ali. É a versão Idade Média do controle de território, só que temperada com pó. Numa palavra, narcofeudalismo.
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A sanha territorial do crime organizado acaba gerando um êxodo: o bairro de Brás de Pina, bem ao lado da Cidade Alta, tinha 59 mil moradores em 2010; em 2022, havia encolhido para 45 mil. Cordovil desidratou de 45 mil habitantes para cerca de 35 mil. A Penha Circular murchou de 48 mil para 37 mil pessoas. Somados, mais de 2.300 domicílios particulares ficaram desocupados nesses três bairros, segundo dados do Censo 2022. Quem pode vai embora.
Os portões usados como barricadas por traficantes do Morro Santo Amaro
Reprodução
A operação Barricada Zero, anunciada nesta segunda-feira pelo governador Cláudio Castro, é um primeiro passo para recuperar território. Menos pelo fim do bloqueio à entrada da polícia e mais pela retomada do singelo direito de ir e vir, que se tornou um luxo para muita gente que mora nas favelas e seus entornos não por escolha, mas por necessidade.
O maior desafio desse programa do governo é evitar o enxugamento de gelo, que a barreira removida na segunda-feira de manhã volte para o mesmo lugar antes do fim da tarde. Acabar com a barricada, em termos técnicos, é algo simples; bem mais difícil é dar fim à tranquilidade dos bandidos e extinguir as fortalezas do crime.