Vivi para contar: 'Meu filho dizia que iria me dar muito orgulho', diz pai de adolescente morto em megaoperação
O pai do adolescente de 14 anos morto na megaoperação do Complexo da Penha, no último dia 28, jamais imaginou que o filho pudesse integrar a Tropa do Urso — grupo ligado ao traficante Edgar Alves de Andrade, o Doca, chefe do Comando Vermelho (CV). Há cerca de um mês, ele começou a desconfiar do comportamento do menino, que havia deixado de frequentar a escola.
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Por um descuido, o jovem acabou deixando o WhatsApp aberto no celular. Foi então que o pai levou um susto ao encontrar uma foto de X. segurando um fuzil em uma favela da Penha, a aproximadamente 33 quilômetros de onde a família morava. O contato do adolescente com o tráfico, segundo o pai, teria ocorrido por meio das redes sociais — hoje usadas como ferramenta de marketing do crime para ganhar seguidores e atrair jovens para as facções. O garoto era um dos 117 mortos encontrados no alto da Serra da Misericórdia, na Penha.
Leia o depoimento do pai de adolescente de 14 anos morto na megaoperação ao GLOBO:
“Tenho 56 anos e criei outros quatro filhos, além do meu caçula, que morreu nessa situação. Os outros estão bem de vida, tenho netos, nunca tive nenhum problema com eles. O caçula, por ser o mais novo, era o meu xodó. Depois que eu e a mãe dele nos separamos, ele vinha me visitar aos fins de semana. Tenho um bom relacionamento com ela. Somos amigos. Há três meses, ela me pediu que eu ficasse com ele. Estava rebelde e não estava indo à escola. Ele chegava à porta do colégio, tirava uma foto, mandava para a mãe e fugia.
Ele passou a morar comigo. A professora disse que ele era um ótimo aluno quando queria, mas, como faltou muito, acabou perdendo o ano. Sou auxiliar de serviços gerais, trabalho com obras e passo o dia inteiro no sol. Quando chegava do serviço, ele era carinhoso comigo. Perguntava se eu estava cansado, ajudava a lavar o banheiro e a louça, mas ficava o dia todo no celular. Eu conversava, dava conselhos. Achava que ele me ouvia. Ele dizia: ‘Tá bem, pai. Não se preocupa, não. Eu te amo’. Dizia também que ainda iria me dar muito orgulho.
“Foi escolha dele”, diz pai de adolescente morto em megaoperação
Ele trocava o dia pela noite. Quando eu já tinha saído para trabalhar, me ligava cedo para desejar bom dia e mandar beijo. Quando chegou na minha casa, há três meses, estava muito magro. Comprei vitaminas e minha irmã fazia comida para ele todos os dias. Ele voltou a comer na hora certa, engordou, ficou forte. Usava um chinelo velho com a tira amarrada com arame. Comprei um chinelo de marca e uma camisa do Flamengo, o time dele.
Disse que queria uma moto. Falei que ele não tinha idade para isso, mas que, no futuro, eu compraria uma Biz para ele andar. Só precisava me prometer que não iria empinar, como fazia com a bicicleta. Ele ficou todo contente.
A gente conversava bastante, tinha diálogo. Ele sempre parecia tranquilo. Quando era mais novo, dizia que queria jogar futebol. Comprei chuteira, camisa de time. Depois quis fazer luta. Passou a usar isso no colégio. Um dia contou que foi empurrado na fila da cantina e revidou. Eu chamei a atenção dele, dizendo que o colega poderia bater a cabeça no chão e se machucar sério ou até morrer. Assim como dizia “sim”, eu também sabia dizer “não”.
Meu filho passou a sair de casa à noite, antes de eu chegar do trabalho. Isso aconteceu três vezes. Passei a observar mais. Até que, um dia, ele foi tomar banho e deixou o WhatsApp aberto. Eu sou pai e posso olhar o telefone dele, né? Tomei um susto: havia uma foto dele segurando um fuzil na favela. Quando saiu do banheiro, perguntei o que era aquilo. Disse que era brincadeira, nada demais, que tinha sido na Penha. Eu nunca tinha pisado na Penha; só tinha passado de trem e via a igreja no alto do morro.
Hoje em dia, com esse negócio de internet, de rede social, os bandidos atraem os filhos da gente. Vendem ilusão. Os garotos ficam deslumbrados. Acham que aquele mundo é verdadeiro. Sentei com meu filho e disse: ‘Você tem que entender que esse caminho é caminho de prisão. Prisão é estar numa cadeia, algemado. Teu pai anda onde quiser. A melhor coisa é ter liberdade. Não é essa liberdade que eles mostram lá dentro da favela’. Aí ele me falou que andava de moto e se sentia livre quando estava na Penha. Disse que até as meninas o disputavam. Foi quando percebi que eu não conhecia meu menino. No celular dele tinha até vídeo dele dançando.
Falei para ele: ‘O que vai condenar vocês, se exibindo com fuzis, é a rede social de vocês. Vocês se mostram como bandidos. Vocês não têm disposição’. Falei da importância de ser honesto, trabalhador. Ele me ouvia de forma fria. Dei conselho, levei para ouvir conselho dos pastores da igreja; alguns já tinham passado por isso.
Para afastá-lo de tudo, eu estava planejando antecipar minhas férias para irmos para um sítio no interior do estado, mas não deu tempo. Construí um quarto com banheiro para ele, para dar um cantinho melhor. Estava até pintando, mas perdi a batalha.
Um dia, cheguei em casa e vi que faltava o biscoito recheado de chocolate que ele adorava. Disse: ‘Filho, estou indo ao armazém comprar seu biscoito’. Quando voltei, ele não estava mais. Um rapaz de moto tinha ido buscá-lo para levá-lo para a favela, na sexta-feira (dia 24). Liguei para ele todos os dias e ele atendeu, menos na terça-feira (dia 28). Pedi que voltasse para casa e ele dizia: ‘Tô no baile, amanhã eu volto’. Mas ele não voltou.
Quando vi as notícias da megaoperação da polícia, senti algo estranho. Sabia que algo tinha acontecido. Vi fotos nas redes sociais dos mortos na Penha. Reconheci o corpo dele pela bermuda e pelo casaco pretos. Eu conhecia bem as roupas dele, porque era eu quem esfregava no tanque. Ele voltava com elas muito sujas. Esses garotos acham que aquele mundo é verdadeiro. Infelizmente, meu filho escolheu esse caminho.
A mãe dele decidiu que deveríamos procurá-lo na Penha. Era a primeira vez que pisávamos lá. Quando chegamos à praça onde enfileiraram os corpos, o dele não estava. Já tinha sido levado para o IML. Mesmo assim, fomos aos hospitais primeiro. Mãe nunca quer acreditar que o filho está morto. Eu fui tentando trazê-la para a realidade, preparando ela. Fomos ao IML e, após dois dias, fiz o reconhecimento.
Eu sei de uma coisa: não era para ele estar lá. Não era o lugar dele. Ele escolheu aquela situação, se colocou naquela posição. Se tivesse ouvido os conselhos, estaria com a família. Não fui procurado pelo Estado e nem espero nada de governo. Vou continuar minha missão de alertar outras famílias para os perigos das redes sociais. E vou cumprir a promessa que fiz ao meu filho: vou terminar o quarto dele e colocar um retrato bem grande. Para mim, ele continuará sendo meu filho amado.”