Minhas melhores leituras deste ano
Lá se vai 2025. Um ano longo e, por aqui, bastante produtivo, devo confessar. Em especial o segundo semestre, quando foram publicados três trabalhos importantes de que participei. Primeiro veio o volume dois da antologia Tênebra - Narrativas brasileiras de horror (Fósforo), que contempla a primeira metade do século 20, e que organizei junto com o professor Júlio França, da UERJ. Depois, foi publicado o meu mais recente livro de ficção: Lucífugo (Avec), uma novela de horror com um sujeito monstruoso contando sua própria história de violência e perversão. Por fim, o box Ficção completa de Edgar Allan Poe (Nova Fronteira), com minha organização. Isso além de aulas em universidade, cursos livres, palestras, traduções e tudo mais. Tanto trabalho, porém, tem seus custos. Li relativamente pouco neste ano, menos do que gostaria. Ainda assim, grandes títulos passaram pela minha cabeceira, e a lista abaixo é composta por aqueles de que mais gostei — mas que não necessariamente foram lançados em 2025. E você verá que quase não há obras de horror; também foi um ano mais mirrado nesse sentido. Fiz muitas leituras de trabalho dentro do gênero, mas ainda assim li menos do que o costume. Então, sem mais delongas, vamos às obras que brilharam forte por aqui: Cada um por si e Deus contra todos, autobiografia de Werner Herzog (Todavia) Como se não bastasse ser uma lenda viva do cinema, o alemão Werner Herzog também se revela um escritor de grande talento. Considero impossível não devorarmos as 350 páginas desta autobiografia publicada em 2022, com tradução de Sonali Bertuol. Na verdade, Cada um por si e Deus contra todos está mais para um livro de memórias, porque, ainda que siga uma cronologia, as conexões elaboradas por Herzog embaralham tudo. E que mente tem o diretor de Fitzcarraldo, Aguirre - A cólera dos Deuses, Nosferatu - O vampiro da noite e outras dezenas de filmes! Que forma de pensar e interpretar o mundo, transitando entre luzes e sombras, entre ordem e caos. Aqui, Herzog se revela excêntrico no sentido literal: sempre longe dos centros e das convenções. Em todos os sentidos. De como deu um jeito de transformar a infância paupérrima na Baviera em um período maravilhoso e imaginativo, até a forma de fazer cinema. No curso que costuma ministrar, por exemplo, o cineasta ensina pessoas a arrombar casas e a roubar coisas – ele próprio afanou uma câmera para rodar os primeiros filmes. São tantas, tantas histórias formidáveis, tantas viagens e situações limítrofes, tantos mergulhos no caos. Da conturbadíssima relação com Klaus Kinski aos inúmeros episódios em que quase morreu nos confins do mundo, nada fica de fora. É verdade que o próprio Herzog admite inventar um bocado, e que também confessa incorporar alguns mitos que atribuem à sua persona. Ele é, no entanto e acima de tudo, um sujeito que jamais deixou de se interessar pelo mundo, e que, com mais de 80 anos, continua tomado por vários planos de filmes. Uma inspiração, sem dúvida. A corneta, romance de Leonora Carrington (Alfaguara) Publicado em 1974, A corneta, da pintora e escritora britânica radicada no México Leonora Carrington (1917 - 2011), é uma joia da chamada literatura não mimética. Pode ser enquadrada no grande campo do fantástico, embora também seja a epítome de um surrealismo tardio — movimento ao qual Carrington, inclusive, acabou se vinculando como pintora. Tanto na obra pictórica quanto na literária, Carrington apaga qualquer limite rígido entre ideias e imagens, que se encadeiam como se pertencessem umas às outras, como se fossem uma coisa só — à maneira de quimeras e outras entidades que surgem em seus quadros. Neste romance traduzido por Fabiane Secches, a ausência de limites marca tanto a estrutura quanto o enredo. A corneta é, a um só tempo, uma narrativa cômica, policial, dramática, mitológica e por vezes assustadora. Quanto ao enredo, a história narrada pela protagonista Marian Leatherby é de uma liberdade imaginativa sem precedentes. Quase surda e sem nenhum dente na boca, ela mora com o filho, a nora e um neto, e passa os dias alienada do mundo ao redor. Até que é internada em um asilo, na verdade um complexo com chalés em forma de bota, cogumelos, vagões ferroviários, iglus e até uma múmia egípcia. Há apenas mulheres idosas por lá, e o lugar é comandado por um casal tirânico. Uma das muitas façanhas de Carrington é dar protagonismo a um grupo duplamente marginalizado; mulheres idosas. Carmella, a amiga de Marian, é a estrela mais cintilante dessa constelação. É ela quem, com uma imaginação poderosa, elabora planos conspiratórios, e será ela quem viabilizará a revolução final do grupo, nesta inesquecível declaração de amor à imaginação. Orbital, romance de Samantha Harvey (DBA) Se me pedissem para definir este romance da inglesa Samantha Harvey em uma frase sucinta, responderia ser “uma experiência à parte”. Literalmente. Durante toda a leitura, nos vemos apartados de qualquer lugar comum, corriqueiro — assim como os seis astronautas na espaçonave que orbita a Terra, contemplando-a, ora imaginando os conflitos e os afetos que deixaram por lá, ora redimensionando tudo à poeira cósmica que afinal somos. É como se Beckett se aventurasse nos meandros da ficção científica — todos ali estão condenados à espera de voltar para o planeta, o que no plano diegético do livro não ocorre. Resulta, daí, um livro introspectivo, essencialmente passivo. A narração em terceira pessoa passeia pela rotina ordinária dos seis personagens e também pelo planeta, por todos os recantos dele, no que se revela uma declaração de amor complexa. É verdade que o texto vez ou outra se arrasta, mas a imaginação de Harvey, tão trágica quanto bela, nos mantém grudados nas páginas, e os astronautas, às suas janelinhas. A estrutura do livro tem, ainda, algo joyceano, pois o enredo transcorre durante apenas um dia na órbita, o equivalente a seis dias na Terra. Por tudo isso, este notável romance, que tem tradução de Adriano Scandolara, ocupa em minha memória um ponto singular, só dele. O ninho do pássaro, romance de Shirley Jackson (Alfaguara) Em 2025, completaram-se sessenta anos da morte da estadunidense Shirley Jackson. E para marcar a efeméride, a Alfaguara publicou por aqui o livro O ninho do pássaro, até então inédito em língua portuguesa. O romance foi lançado originalmente em 1954 e, com o tempo, foi eclipsado por outros títulos da autora, como A assombração da Casa da Colina, O homem da forca e Sempre vivemos no castelo — que, em conjunto com alguns de seus contos, transformaram-na em uma referência do horror psicológico. Com efeito, este livro se apresenta como exemplo da plenitude da “rainha do terror”. E inicialmente o enredo até nos convida a ter essa impressão. A protagonista Elizabeth Richmond, como outras personagens de Jackson, é uma jovem tímida, introspectiva, que sofre de dores de cabeça terríveis e ataques de amnésia, durante os quais se transforma em algo muito diferente do que é. Mas só sabemos disso pelas reações de sua tia Morgen, com quem vive. Elizabeth é, então, encaminhada para um psiquiatra, dr. Victor Wright, que por meio de hipnose descobre existirem, dentro da jovem, quatro personalidades diferentes entre si, vivendo em constante conflito. No âmago dessa fragmentação está um evento decisivo, a morte da mãe de Elizabeth, cercada de mistérios. Temos, a partir daí, um ambicioso jogo de espelhos, que demanda arrojos formais de Jackson. É por meio das transformações no rosto da protagonista e de suas escolhas vocabulares que seus interlocutores percebem estar diante das personalidades ocultas na jovem: Beth (amorosa e compreensiva), Betsy (provocadora e infantil), Bess (egoísta e materialista) ou da própria Elizabeth (acanhada). As quatro se acusam e se sabotam sem parar, o que ocorre por meio de cenas complexas e inevitavelmente confusas. No início, O ninho do pássaro parece mesmo seguir pela mesma vereda sombria de outros títulos de Jackson. No entanto, o livro resulta surpreendentemente divertido. Tem algo de bufônico na tia Morgen, uma solteirona maliciosa e extravagante que faz de tudo para salvar a sobrinha de si mesma; e o dr. Wright é caprichoso e cínico o suficiente para que seu relato seja marcado por tiradas inesperadas. Assim, além de uma obra que satiriza os perfis femininos considerados “apropriados” para a época, O ninho do pássaro contém, no núcleo de sua estonteante arquitetura, um enigma. Com sua resolução, Elizabeth e suas irmãs enfim encontram seu lugar no mundo — um lugar mais ameno do que o destinado a outras protagonistas da autora. Afastando-se das perturbações que a consagraram, Shirley Jackson se mostra hábil ao explorar outro efeito estético, vizinho ao horror, neste formidável romance. Mandrágora, romance de Hanns Heinz Ewers (Valdemar) Este é um dos dois livros ainda inéditos no Brasil desta lista. Foi publicado em 1911 pelo alemão Hanns Heinz Ewers, autor de sucesso que caiu em desgraça por apoiar o regime nazista. Além de destacado romancista e contista em sua época, Ewers roteirizou O estudante de Praga, obra seminal do expressionismo alemão dirigida por Stellan Rye e Paul Wegener, que também a protagonizou. Li Mandrágora na edição espanhola da Valdemar, que tem um impressionante catálogo de literatura gótica e de horror, com tradução de José Rodriguez Ponce. E, a despeito da postura repulsiva de Ewers, é um livro imperdível para fãs do fantástico e do horror, ainda que o tom aqui seja curiosamente divertido. A premissa já vale nossa atenção: Frank Braun, espécie de herói recorrente de Ewers (está em outros dois romances do autor), convence o tio, um médico/cientista propenso a experimentos nada ortodoxos, a fertilizar uma prostituta com o esperma de um condenado à forca. Daí nasce Alraune (Mandrágora), uma das femmes fatales mais fascinantes da literatura ocidental. Extraordinária e metamorfa, ela é absolutamente indiferente às paixões que desperta. Pior: despreza a todos igualmente. Os homens que se aproximam de Alraune têm a vida arruinada das maneiras mais sádicas que você pode imaginar. Este é um livro perverso, inconsequente e sensual, de uma espécie que com o tempo foi se tornando rara. A leitura remete aos contos de Roald Dahl para o público adulto, em especial da coletânea Switch bitch (algo como Vadio instável), de quatro histórias tão sinistras quanto divertidas. São protagonizadas por Oswald Cornelius, um sujeito safado e desprezível, “incapaz de ficar com a mesma mulher por mais de trinta minutos”, e que sempre se dá bem. Não é o caso de Alraune, contudo. O desfecho trágico acentua o horror, que apenas subjaz no restante de Mandrágora, transformando o romance em um dos campeões do ano. The conspiracy against the human race: A contrivance of horror (A conspiração contra a humanidade: Uma invenção do horror), ensaio de Thomas Ligotti (Penguin Random House) O último título de nossa lista é outro livro inédito por aqui. É o primeiro trabalho de não ficção de Thomas Ligotti, autor estadunidense reconhecido como um dos maiores nomes do horror das últimas décadas. No Brasil, curiosamente, Ligotti é pouco lido — em 2024 a Suma lançou a dupla coletânea Canções de um sonhador morte & Escriba sinistro, o único título dele publicado no país, de repercussão apagada. Considerado herdeiro e renovador da estética de H.P. Lovecraft, sua ficção é marcada pelo sobrenatural e por uma visão de mundo absolutamente pessimista. Seus protagonistas, sem exceção, caminham sempre para o completo aniquilamento, obliterados nos buracos negros de um universo ficcional que jamais sequer considera suas existências — o cerne do cosmicismo do autor de “O chamado de Cthulhu”. As bases filosóficas da ficção de Ligotti estão no longo ensaio The conspiracy against the human race: A contrivance of horror (A conspiração contra a humanidade: Uma criação do horror, em livre tradução), publicado em 2010. O autor parte de uma ideia central emprestada do filósofo norueguês Peter Wessel Zapffe: a de que a consciência humana configura um terrível paradoxo, já que, ao mesmo tempo que sabemos existir, damos um jeito de fingir que essa existência não é apenas dor e ruína. Eis a conspiração, o ataque à nossa condição verdadeira — sem essa autossabotagem de nossa própria consciência, e vítimas dos mecanismos malignos e insaciáveis que movem o mundo, seríamos obrigados a aceitar que o melhor a fazer é encerrarmos a aventura humana. Alguns o fazem e fizeram pelo suicídio; mas Ligotti admite a dificuldade do ato, então segue o caminho do antinatalismo. Nesse sentido, é o manifesto mais eloquente que existe pela extinção voluntária da raça humana, fundamentado em outros pensadores do pessimismo como os alemães Arthur Schopenhauer e Philip Mainländer. E é uma leitura assombrosa, da qual dificilmente saímos os mesmos. PS: em janeiro, este colunista estará de férias. Nos vemos em fevereiro!