O cabelo está penteado para trás, com umas entradas precoces para a idade. Tem um blazer azul-escuro sobre uma camisa ao xadrez rosa e óculos de massa arredondados castanhos. Quando se apresenta, Gonzalo diz que é “de direitas” e religioso. “ _Tengo el pack completo de cayetano_.” Ou seja, considera-se “um beto”. Diz até, hesitante, que “pode soar um pouco classista”, mas considera-se “de outra classe social”. E é com este vídeo que se apresenta em _First Dates_ , um daqueles _reality shows_ que juntam desconhecidos em encontros amorosos. O vídeo de Gonzalo tornou-se viral em Espanha. Não por causa do seu aspeto físico nem pela forma como tentou seduzir a rapariga. Nada disso. Gonzalo ficou famoso porque, depois de se apresentar desta maneira aos telespectadores, percebemos, pela conversa com a mulher com quem a produção escolheu juntá-lo, que tem um complexo de classe, que não é bem aquele que a sua apresentação faria supor. “Sou repositor no Costco, não sei se estás a ver”, diz. Do outro lado da mesa, Natália, uma estudante de Málaga, reage. “Sim, o supermercado.” O jovem Gonzalo, de 24 anos, trabalha numa cadeia de supermercados em Madrid. Natália quer saber se já consegue ser autónomo, se tem casa. “Não, não, estou em casa”, responde ele. “Em casa dos teus pais?”, insiste ela. “Sim”, concede ele.
Gonzalo tinha começado por dizer à produção do programa que o seu estilo de mulher era Tamara Falcó. Para quem não compre a _Hola!_ , Tamara Falcó é a marquesa de Griñon, filha de Isabel Preysler com Carlos Falcó, uma rica herdeira aristocrata que, segundo a imprensa cor-de-rosa, esteve para ser freira. Um ponto que talvez ajude a explicar o fraquinho deste homem que se descreve como “viejoven” (um jovem velho), “tradicional e algo radical”. Mas isso já será uma especulação.
O que sabemos, porque Gonzalo o afirma sem se aperceber da ironia da declaração, é que este repositor de supermercado que vive com os pais acha que é de classe alta. E do alto dessa crença, olha com desdém aristocrático para a jovem estudante universitária que lhe puseram à frente para um encontro amoroso.
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Gonzalo não detém meios de produção. Não é dono de terras nem de fábricas. Não é sequer proprietário do seu próprio teto. Tem de trabalhar num emprego que muito provavelmente é por turnos e cujo pagamento não andará muito longe do salário mínimo espanhol. E mesmo assim não se sustenta. Mesmo assim, não consegue viver fora de casa dos pais. Mas, apesar de tudo isso, acha que não é da classe trabalhadora. Gonzalo identifica-se como classe alta. E quem sou eu para contrariar aquilo com que alguém se identifica? Eu não o faria. Mas talvez o Gonzalo o fizesse. É que o Gonzalo diz que é “de direitas”, “tradicional” e até “religioso”. E esse tipo de pessoas tende a viver mal com a ideia de que alguém pode identificar-se como sendo o que não é. Acho que o Gonzalo não hesitaria em apontar o dedo em riste e chamar “woke” a alguém que dissesse identificar-se como alguma coisa que não é. Talvez começasse aos gritos a falar de “marxismo cultural” ou de “ideologia de género”.
Eu não sei como qualificar aquilo de que padece o Gonzalo neste seu problema identitário. Não sei se será adequado dizer que ele foi vítima da “ideologia de classe” – quem sabe se alguma coisa pregada em aulas de empreendedorismo na escola. E acho que o melhor será deixar Marx em paz que, por esta altura, o autor de _O Capital_ já deve estar às voltas na campa com a ideia de que o jovem trabalhador de classe baixa acredita piamente que faz parte da aristocracia. Sim, é verdade que Marx já tinha previsto isto, com a ideia de que a classe média, ou a pequena burguesia, vivia alienada pela ideologia dominante, sendo instrumental para manter o estado das coisas que privilegiava a burguesia, proprietária dos meios de produção. Mas até para Marx o caso de Gonzalo devia parecer surpreendente. É que Gonzalo está mais perto do proletariado do que de ser um pequeno-burguês no jargão marxista.
Gonzalo não conseguiria pagar os custos de saúde se tivesse uma doença grave, mas indigna-secom os impostos e acha que o Estado social é uma mama, que só serve os ociosos
Gonzalo tornou-se viral em Espanha porque se tornou risível. O caso é tão evidente que pôs _nuestros hermanos_ a rir, com o dislate do trabalhador de supermercado que sonha casar com alguém como a marquesa de Griñon. Sim, Gonzalo é um pouco ridículo. Mas não devemos rir-nos dele. O que ele nos mostra é algo muito sério.
Gonzalo é o oprimido do século XXI. Foi criado na era das redes sociais, da meritocracia, dos livros de autoajuda, que nos garantem que nos basta “manifestar” para conseguirmos todo o conforto material que imaginarmos. Foi instruído a idolatrar os multimilionários e a ver na pobreza uma falha moral. Foi educado para ser um empreendedor, sem que alguém lhe tenha dito que para “empreender” é preciso ter capital e recursos que não dependem apenas da sua genialidade individual. Acredita que basta vestir-se e falar de uma determinada maneira para passar a ser da classe alta. Não conseguiria pagar os custos de saúde se tivesse uma doença grave, mas indigna-se com os impostos e acha que o Estado social é uma mama, que só serve os ociosos. Trabalha muito e é explorado, mas acha que um dia vai conseguir ser superior, nem que seja apenas em relação ao sem-abrigo que ignora à saída da igreja, ao negro que considera inferior ou à mulher, que deve ser bela, recatada e do lar.
Gonzalo é o oprimido ideal. Não questiona a sua própria condição, porque acha que é tudo uma questão de esforço. E ele está a esforçar-se. Se todo esse esforço não der em nada, pode sempre culpar os “subsídio-dependentes”, os imigrantes, os negros ou os ciganos. E só o facto de os apontar a dedo e de lhes cuspir na cara, nem que seja apenas em caixas de comentários das redes sociais, o fará sentir-se melhor. E é sentindo-se melhor, julgando ter “o pack completo de beto”, que será gozado pelos betos a sério, aqueles que nasceram em famílias ricas como a da marquesa com quem ele sonha, que estudaram nos melhores colégios e mal nasceram estavam já destinados a ser acionistas de grandes empresas, proprietários de latifúndios, donos de contas bancárias recheadas, com as quais podem comprar casas como aquela em que Gonzalo vive com os pais, para as transformar em fichas de casino, enviando o dinheiro, livre de impostos, para paraísos fiscais, enquanto o pobre repositor de supermercado pena no inferno doméstico. Gonzalo está contente consigo próprio. Os herdeiros ricos também. E agradecem-lhe muito que lute pela baixa dos impostos, que queira ver a saúde pública reduzida a nada, para aumentar a quota de negócio dos privados, que desdenhe de sindicatos e lutas de trabalhadores, que se mostre contente por ser precário e flexível. E culpe sempre os de baixo.
O mais certo é que Gonzalo nunca se case com uma marquesa. Mas a marquesa deve-lhe muito mais do que pode imaginar.