Arquivo Transformista: o acervo digital que resgata a história da arte transformista em São Paulo
Em um ano em que a memória LGBTQIAPN+ ocupa o centro da conversa, o Arquivo Transformista surge como gesto histórico: um acervo digital público e gratuito que resgata, organiza e celebra a arte transformista em São Paulo desde o fim dos anos 1960. Idealizado pelo Acervo Bajubá, o projeto reúne trajetórias de ícones como Aloma Divina, Kelly Cunha, Gretta Starr, Marcinha do Corintho e Victoria Principal — artistas que moldaram a noite paulistana, criaram linguagem, ensinaram técnicas e abriram caminhos para tudo o que hoje reconhecemos como potência drag no país. Ao longo de dois anos, a equipe de pesquisa mergulhou em álbuns pessoais, relatos orais e memórias guardadas em caixas que atravessaram décadas. São cerca de 250 imagens que revelam bastidores de casas noturnas que já não existem, concursos de beleza, performances antológicas e momentos íntimos que nunca haviam sido compartilhados com o público. “Reunir e disponibilizar esses registros é reconhecer a contribuição dessas artistas para a cultura brasileira”, diz Angel Natan, artista, pesquisadora e produtora-executiva do projeto. Para além da digitalização, o Arquivo Transformista funciona como reparação: devolve visibilidade a uma geração de mulheres trans e travestis cuja importância raramente foi registrada pela imprensa ou por instituições oficiais. Muitas dessas histórias sobreviveram apenas na memória coletiva - e agora encontram, pela primeira vez, um espaço de preservação. “O maior desafio foi lidar com os silêncios deixados pelo tempo e pelo preconceito”, afirma Angel. Em entrevista à Vogue, Angel detalha os bastidores da pesquisa, a relação íntima com as artistas homenageadas, as heranças imateriais transmitidas entre gerações e o impacto emocional de ver essas memórias, enfim, reconhecidas como parte fundamental da história da cultura brasileira. Confira abaixo: Vogue: O Arquivo Transformista nasce como um gesto de amor e resistência, um resgate de histórias que moldaram a cultura LGBTQIAPN+ paulistana. Como surgiu a vontade de transformar essas memórias em um acervo digital acessível a todos? Angel Natan: O projeto surge a partir da parceria de mais de cinco anos entre o Acervo Bajubá, um acervo comunitário dedicado à memória LGBTQIAPN+ de São Paulo — e as artistas transformistas, construída por meio de participações em podcasts, entrevistas e ações educativas em oficinas e ativações culturais. A vontade de transformar essas memórias em um acervo digital nasce da ausência de um arquivo que abordasse a arte do transformismo, que é, ao mesmo tempo, a memória da noite paulistana e a trajetória de artistas travestis que se descobriam enquanto exploravam a cidade e aprendiam a enfrentar seus desafios. Reunir e compartilhar esses registros, guardados por anos, é uma forma de reconhecer a contribuição dessas artistas para a construção da cultura brasileira e para a preservação da memória de pessoas trans e travestis. Do arquivo de Gretta Starr - Registro feito no aniversário da Blue Space, famosa casa LGBTQI+ em SP, nos anos 2000 Divulgação Vogue: A escolha de homenagear artistas com mais de 50 anos tem um significado poderoso — é uma forma de olhar para a longevidade com admiração e gratidão. Como foi o processo de aproximação com essas mulheres e o que mais te tocou em suas trajetórias? Angel Natan: O processo de aproximação foi muito natural. Por eu também ser travesti, há uma intimidade diferente nesse vínculo — um acesso a lugares mais profundos, de afeto e reconhecimento, que faz com que eu as considere parte da minha família. Falamos todos os dias, compartilhamos risos e lágrimas; existe um carinho e respeito mútuo. Para além dos trabalhos que já realizamos juntas, somos amigas, e as trajetórias de cada uma delas, dentro e fora dos palcos, são testemunhos vivos de resistência e beleza. O que mais me tocou foi ouvir algumas histórias marcadas pela saudade de amigas, bailarinos e artistas que perdemos durante a epidemia de HIV/Aids. É impossível não se emocionar ao perceber a dimensão dos talentos que se foram e o quanto essas experiências moldaram toda uma geração. Vogue: Em um ano em que tanto se fala sobre memória e legado, o Arquivo Transformista parece costurar passado, presente e futuro da arte drag e transformista no Brasil. Que pontes vocês desejam construir entre essas gerações? Angel Natan: A principal ponte que desejamos construir é o reconhecimento da participação da nossa comunidade na cultura popular, valorizando os saberes imateriais que atravessam gerações. Conhecimentos como “esconder o chuchu” (a barba, em Bajubá, o dialeto criado por travestis e pessoas trans), modelar um cabelo sintético ou criar figurinos e performances com poucos recursos são heranças transmitidas entre artistas ao longo do tempo. O projeto busca reintroduzir essas artistas para uma nova geração, reconhecendo todo o caminho já trilhado e possibilitando que sejam valorizadas, compartilhando suas experiências e atuando em novos espaços. Trata-se de afirmar que a arte transformista e drag é também um patrimônio vivo, que continua a se reinventar e a inspirar o futuro. Vogue: O projeto nasce também como um ato de reparação, diante da ausência dessas narrativas em acervos e registros oficiais. Quais foram os maiores desafios em reconstruir histórias que o tempo — e muitas vezes o preconceito — tentou apagar? Angel Natan: O maior desafio foi lidar com os silêncios, tanto os deixados pelo tempo quanto os provocados pelo preconceito. Muitas dessas histórias nunca foram registradas oficialmente, e o que existe sobre elas está disperso, guardado em arquivos pessoais, memórias fragmentadas ou lembranças contadas entre amigas. É um trabalho que exige escuta, cuidado e sensibilidade, porque estamos falando de vidas atravessadas por apagamentos, violências e também por muita potência. Outro desafio é garantir que essas narrativas sejam tratadas com o respeito e a dignidade que sempre mereceram, construindo um espaço em que essas artistas possam se ver representadas e reconhecidas. O projeto é, antes de tudo, um gesto de amor e reparação — devolver a elas o protagonismo que sempre tiveram na história da cultura brasileira. Vogue: As imagens reunidas pelo projeto são de uma força imensa. Que sentimento atravessou vocês ao manusear essas fotos, ouvir essas vozes e devolver às artistas a própria história? Angel Natan: Foi um sentimento muito profundo, difícil até de colocar em palavras. Ao manusear essas fotos e ouvir as vozes das artistas, havia uma mistura de emoção, respeito e gratidão. Cada imagem carregava não só beleza, mas também coragem — a coragem de existir, criar e brilhar mesmo em tempos de invisibilidade e preconceito. Reencontrar essas memórias foi como abrir um portal para a história viva da nossa comunidade. Ver as artistas se reconhecendo nessas imagens, rindo, se emocionando, lembrando de quem já se foi, foi um dos momentos mais potentes de todo o processo. Era como devolver a elas um pedaço de si mesmas. Vogue: O transformismo é arte, mas também é sobrevivência, coragem e invenção. Como você definiria a importância dessa forma de expressão na construção da cultura LGBTQIAPN+ brasileira? Angel Natan: O transformismo é uma das expressões mais ricas e simbólicas da cultura LGBTQIAPN+ brasileira. É arte, mas também é resistência, sobrevivência e invenção cotidiana. Ele surge como um espaço de liberdade, onde corpos dissidentes puderam existir e criar novas possibilidades de ser e de estar no mundo. No palco, as artistas transformistas reinventaram a própria ideia de espetáculo, misturando humor, crítica, glamour e política, muitas vezes em contextos de exclusão e censura. Essa arte abriu caminhos para que outras linguagens e identidades florescessem, deixando uma marca profunda na música, no teatro, na moda e na cultura popular. O transformismo nos ensina que criar é um ato de resistência — e que cada performance é também uma celebração da vida, da memória e da nossa presença coletiva na história do Brasil. Vogue: Em que medida o Arquivo Transformista dialoga com o momento atual, em que a arte drag ocupa espaços de visibilidade global? Você acredita que as novas gerações têm consciência da herança deixada por essas pioneiras? Angel Natan: O Arquivo Transformista dialoga diretamente com esse momento de maior visibilidade da arte drag, porque traz à tona as histórias e trajetórias que pavimentaram o caminho para que essa visibilidade fosse possível. Enquanto hoje vemos artistas drags em grandes palcos, na televisão e nas redes sociais, é importante lembrar que essa expressão nasceu da ousadia e da resistência de quem se montava quando isso significava colocar o corpo em risco. O projeto busca justamente conectar essas gerações, mostrando que por trás do brilho atual existe uma herança construída com muito suor, criatividade e coragem. Acredito que muitas pessoas das novas gerações estão começando a reconhecer essa história, mas ainda há muito a ser feito para ampliar esse entendimento. O Arquivo Transformista atua como um elo entre passado e presente, oferecendo referências, imagens e narrativas que ajudam a compreender que o que hoje é celebrado foi, por muito tempo, marginalizado. É um convite para olhar para essas pioneiras com o respeito e o reconhecimento que sempre mereceram. Aloma Divina com Claudia Celeste no concurso Miss Boneca Pop em 1976 Divulgação/Acervo Transformista Vogue: Além do acervo digital, o projeto ganhou vida em encontros, rodas de conversa e oficinas. O que mais te emocionou ao ver o público reagir a essas histórias tão vivas e presentes? Angel Natan: Teve um episódio no evento de lançamento que me marcou muito. Pedi para uma das artistas, a Marcinha do Corintho, apresentar um número que ela havia feito apenas duas vezes: “Swing da Cor”, de Daniela Mercury — música que ela inclusive performou no Show de Calouros do Silvio Santos. Quando terminou a apresentação, Marcinha começou a chorar. Disse que se emocionava muito, que hoje tem problemas cardíacos e se cansa com facilidade, e que por isso era difícil dançar aquela música novamente. Mas também contou que se sentia feliz por poder reviver aquele momento diante de um público que a aplaudia com tanto carinho e respeito. Foi uma cena profundamente comovente. Ver uma artista com uma trajetória tão importante, que já enfrentou tantos desafios, se emocionar ao revisitar parte de sua própria história tocou a todos que estavam ali. A plateia também se emocionou; havia no ar um sentimento coletivo de reconhecimento e gratidão. Aquele instante sintetizou o que o Arquivo Transformista representa: a celebração da memória viva. Vogue: Quando o público acessar o Arquivo Transformista, o que você espera que ele sinta? Que tipo de emoção ou reflexão esse mergulho nas memórias pode despertar? Angel Natan: Espero que o público sinta uma mistura de emoção, admiração e reconhecimento. Ao mergulhar nas memórias do Arquivo Transformista, é possível perceber não apenas a beleza e o talento das artistas, mas também a força, a resistência e a criatividade que atravessaram décadas de marginalização e preconceito. O transformismo foi também uma verdadeira porta de experimentação, um espaço seguro de invenção e expressão que possibilitou a muitas pessoas explorar e descobrir suas identidades de gênero, ajudando-as a se reconhecer e afirmar quem realmente são. Que essas histórias despertem empatia, respeito e curiosidade; uma reflexão sobre como a arte transformista construiu caminhos na cultura brasileira e abriu espaço para novas formas de existir e se expressar. Mais do que nostalgia, quero que o arquivo provoque consciência: de que essas trajetórias são parte viva da nossa história, que inspiram o presente e continuam a transformar o futuro. Vogue: Se pudesse resumir o projeto em uma frase, qual seria o legado que o Arquivo Transformista deixa para o futuro da arte e da comunidade LGBTQIAPN+? Angel Natan: O Arquivo Transformista preserva memórias, honra trajetórias e funciona como uma carta de amor às travestis e artistas que fizeram da noite paulistana e da arte transformista um patrimônio vivo da nossa cultura. Canal da Vogue Quer saber as principais novidades sobre moda, beleza, cultura e lifestyle? Siga o novo canal da Vogue no WhatsApp e receba tudo em primeira mão!