'Eles não são vistos e não pertencem a nenhum lugar. É prato cheio para o tráfico', diz especialista sobre juventude perdida para o crime
Os 117 mortos da megaoperação no Complexo da Penha, em 28 de outubro, foram chamados por Felipe (nome fictício) de “irmãos” numa postagem de lamento naquele dia. O registro era um trecho de reportagem, no qual os corpos apareciam enfileirados na Praça São Lucas, a principal da Vila Cruzeiro, mas o áudio informativo fora trocado por um funk: “É que eles comemora quando a favela chora / Só vou aceitar minha vitória quando o pobre parar de morrer”. Na legenda, ele usou emojis de coração partido e outros que remetem ao luto. Outras publicações foram feitas por ele, inflamadas por sentimentos de ódio e vingança contra a polícia e o Estado.
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Quatro dias depois, Felipe iniciou uma live em um dos perfis que administra no Instagram (a maioria deles é perdida porque o conteúdo viola diretrizes da Meta). A imagem não é muito visível, está escuro e o lugar parece mata. Uma voz masculina surge aos gritos: “Aqui é CV, porra!”. De repente, barulhos de disparos irrompem na cena, e um corpo aparece no chão, ainda sendo alvejado por Felipe e outros comparsas. O rapaz é um dos dez amigos da Penha acompanhados pelo GLOBO ao longo de um ano nas redes sociais, histórias que começaram a ser contadas no último domingo na série “Juventude Perdida” e que, nesta reportagem, abordam possíveis motivações para o comportamento desses jovens, além de soluções para o problema.
Ódio nas redes
Ao longo dos 12 meses de acompanhamento, seis dos amigos morreram, seja em confronto com a polícia ou por rivais. Felipe faz parte dos quatro que permanecem vivos — e atuantes no Comando Vermelho da Penha. Ele tem 21 anos e, diferente da maioria, não foi apreendido nem citado em registros de ocorrência durante a adolescência. Somente aos 18 anos, ele foi oficializado como autor de um homicídio de um rival no bairro Colégio, na Zona Norte, após um comparsa afirmar, em depoimento, que ele teria puxado o gatilho. Atualmente, o rapaz aparece em cinco procedimentos: um na 22ª DP (Penha) e quatro na Delegacia de Repressão a Entorpecentes (DRE). Todos por tráfico e associação para o tráfico.
Felipe foi um dos primeiros acompanhados nas redes pela reportagem. Nos perfis, ele publica fotos armado, ostentando roupas e tênis de marca, fumando maconha e fazendo uso de lança perfume. Também é presença certa nos bailes da comunidade. Pelos amigos, é conhecido como “filhote de Urso”, em alusão a Edgar Alves de Andrade, o Doca ou Urso, chefe do Complexo da Penha e nome importante na hierarquia do Comando Vermelho. Além de fazer a segurança dele, Felipe atua também em confrontos nas zonas Sudoeste e Oeste, principalmente nas favelas do Campinho e na Carobinha. A motivação para os crimes, como destaca nos perfis, é o recorrente sentimento de ódio e o compromisso com a facção.
— Esses garotos crescem ouvindo tiro, já com a violência na porta de casa. Então, eles desenvolvem um senso de autodefesa muito pautado na ideia de que ninguém pode protegê-los. É normal que eles tenham uma fala empoderada, sustentando que estão ali para matar e morrer, sendo “sujeito homem”. Mas, no fundo, ainda são adolescentes cercados de mazelas. Esse ódio que eles relatam demonstra uma total desconfiança em tudo, uma inadequação a tudo. Entendo como: “eu não tenho ferramenta psíquica para elaborar o que eu tô sentindo, então, odeio tudo que é estrutural, que representa regra e que, automaticamente, eu não me encaixo” — aponta Livia Vidal, coordenadora-geral do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo e do Meio Aberto (Sinase).
Para ela, uma das soluções seria melhorar a experiência desses jovens — e da população periférica na totalidade — aos equipamentos estatais.
— A desconfiança é com o que é público. A escola não acompanha o desenvolvimento, expulsa, não compartilha a linguagem dos adolescentes, não é receptiva. A saúde oferece limitações. Se uma menina entra numa unidade, já olham para ela como se a única alternativa fosse uma gravidez precoce. A polícia é vista como uma força que invade, agride, xinga e mata. Então, a mensagem que fica para eles é de que não são vistos e não pertencem a nenhum lugar. E isso é prato cheio para o tráfico — conclui.
O ódio relatado por Felipe também é marcado na pele dos amigos da Penha. Parte deles tatuou a palavra, separada em letras, na base dos dedos da mão. Além disso, é ela que batiza a equipe de roubadores da facção na Penha: a Equipe Ódio, também responsável por latrocínios. Numa perspectiva semelhante à de Lívia, a ex-vereadora Mônica Cunha, que teve um filho morto pela polícia em 2006, aos 20 anos, aponta que esse sentimento é potencializado pela desvalorização da vida.
— Esses adolescentes não têm compreensão sobre risco, acham que nunca vai acontecer nada com eles. Passam a ver o dinheiro ali, aos milhares, sempre fácil. Pagam o crime com a própria vida, numa rotatividade imensa. Crescem acreditando que a vida deles não tem valor e, eles próprios, passam a não valorizar a vida, nem a deles, nem a de ninguém. Reverter essa situação dá trabalho porque exige cuidado, e ninguém quer cuidar, muito menos das desigualdades. Aqui no Rio, os governos repetem os mesmos erros, continuam sem políticas públicas, sem escuta e investindo sempre numa alternativa de morte.
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O filho de Mônica se associou ao tráfico adolescente, quando foi apreendido. Ela recebeu a notícia durante o trabalho. Nunca havia pisado numa delegacia, nem sabia que existia uma apenas para menores. No caso dela, acredita que a exposição à violência doméstica possa ter inflado a mudança de comportamento do filho.
— Um adolescente não acorda e, do nada, decide que vai roubar um carro. É um processo que, infelizmente, ninguém está atento ou toma as rédeas. No meu caso, meu filho foi exposto a violências domésticas que sofri, e isso foi nutrindo raiva nele. Eu nunca tive coragem de perguntar o que o motivo, se eu pudesse voltar atrás, faria isso. Mas eu também parei de me culpar, quando entendi que o Estado é reprodutor de violências, principalmente porque ele passou pelo estado, quando apreendido, e nada foi feito pela sua recuperação.
Juliana Vinuto, professora do departamento de Sociologia da UFF, observa:
— Existem instituições que produzem exclusão, racismo, violência e falta de oportunidade, e apenas mudanças nestas instituições podem afetar as experiências de crianças e adolescentes, não só com o tráfico, mas com o mundo e com si mesmas. E aqui não estou falando que elas são vítimas passivas, mas colocando a principal responsabilidade nos tomadores de decisão nas instituições de Estado.
Após tapa, a mudança da milícia para o CV
Kaio da Silva Honorato foi outro jovem acompanhado ao longo de um ano. Ele nasceu na comunidade do Campinho, onde morava com a mãe. Aos 15 anos, passou a fazer pequenos serviços para a milícia local, mas um desentendimento com um dos chefes do grupo mudou a sua trajetória: em 2023, ele levou um tapa no rosto e foi humilhado na frente dos outros. Revoltado, matou um comparsa e migrou para o Comando Vermelho, no Complexo da Penha, onde foi aceito, principalmente pelos conhecimentos em relação ao bairro de nascença — até hoje alvo de disputas pela facção.
Na nova organização, ele ficou conhecido como Kaioba e ganhou a chefia da Equipe Caos do Morro do 18, grupo especializado na invasão de territórios. No caso dele, as investidas aconteciam, claro, no Campinho e no morro vizinho, o Fubá. O pai dele morava nessa comunidade à época, e, na virada daquele ano, foi expulso e ameaçado de morte. Milicianos e traficantes aliados do Terceiro Comando Puro ainda roubaram objetos e chegaram a matar um morador, acusado de ser “X9”.
Ao menos oito homicídios de rivais tiveram a participação de Kaio, como apontam registros de ocorrência. Os casos só encerraram com a morte dele, em 9 de junho deste ano — dia que se repete a outros três jovens, dos seis que morreram até agora. Aos 19 anos, ele foi baleado na cabeça por adversários do Fubá. O corpo dele ficou exposto próximo a um campo de futebol comunitário, numa região de mata da comunidade. A retirada foi feita por um motorista de aplicativo que passava pela Rua Clarimundo de Melo e foi abordado por traficantes. Com uma pistola apontada em sua direção, ele foi obrigado a subir o morro e levar Kaio até a UPA do Engenho de Dentro.
Durante a apuração desta reportagem, o GLOBO entrou em contato com a mãe dos seis rapazes que morreram ao longo do ano. Nenhuma delas quis dar entrevista.
— As mães têm medo de contar as próprias histórias. Sabem que são as primeiras culpadas pelos crimes dos filhos. É isso que as pessoas falam, certo? “A mãe não deu educação”, “A mãe não cuidou”, “A mãe não viu, não estava presente”. Nosso ônus é ser vista como parente de “vagabundo”, é como somos vistas e, assim, silenciadas. Escutar essas mulheres é fundamental para que essa realidade mude. Quais necessidades elas têm? O que elas vivem nas comunidades que poderia ser alvo de política pública?
No caso de Kaio, foi a mãe dele quem fez a liberação de seu corpo no Instituto Médico Legal, no dia seguinte à morte. A policiais, seu relato foi breve: apenas confirmou que o filho tinha ligações com o tráfico.